quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

enquanto te atarefas absurda no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida de mim.




















Na árvore em frente
eu terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos
amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
e me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
do fundo do teu ser de sono e plumas
para me receber; nossa fruição
será serena e tarda, repousarei em ti
como o homem sobre o seu túmulo, pois nada
haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo.
Depois saudaremos a claridade. Tu dirás
bom dia ao teto que nos abriga
e ao espelho que recolhe a tua rápida nudez.
Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia
para matar a nossa sede e mel
para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos
como dois irmãos que se amam além do sangue
e fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino.
Só então nos separaremos. Tu me perguntarás
e eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas
que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher
até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema
dessa desesperada minha busca; que em ti
fez-se a unidade. De repente, ficarei triste
e solitário como um homem, vagamente atento
aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda
no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida
de mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito
como pesada porta. Terei ciúme
da luz que te configura e de ti mesma
que te deixas viver, quando deveras
seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio
em demanda do abismo. Vem-me a angústia
do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
que te circunda – o espaço
que separa os nossos tempos. Tua forma
é outra: bela demais, talvez, para poder
ser totalmente minha. Tua respiração
obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
o ar se faz aroma. Fora de mim
és pura imagem; em mim
és como um pássaro que eu subjugo, como um pão
que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
em que bebo, como um resto de nuvem
sobre que me repouso. Mas nada
consegue arrancar-te à tua obstinação
em ser, fora de mim – e eu sofro, amada
de não me seres mais. Mas tudo é nada.
Olho de súbito tua face, onde há gravada
toda a história da vida, teu corpo
rompendo em flores, teu ventre
fértil. Move-te
uma infinita paciência. Na concha do teu sexo
estou eu, meus poemas, minhas dores
minhas ressurreições. Teus seios
são cântaros de leite com que matas
a fome universal. És mulher
como folha, como flor e como fruto
e eu sou apenas só. Escravizado em ti
despeço-me de mim, sigo caminhando à tua grande
pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho
lavar de ti o que restou do nosso amor
enquanto busco em minha mente algo que te dizer
de estupefaciente. Mas tudo é nada.
São teus gestos que falam, a contração
dos lábios de maneira a esticar melhor a pele
para passar o creme, a boca
levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem
no eterno espelho. E então, desesperado
parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala
alpinista no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo
na Patagônia. Passo três meses
numa jangada em pleno oceano para
provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me
de plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo
naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match
dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me
o "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel.
Mas eis que comes um pêssego. Teu lábio
inferior dobra-se sob a polpa, o suco
escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio
E tu te ris. Teu riso
desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga
quantidades insuspeitadas de estrôncio-90
acumulam-se nas camadas superiores do banheiro
só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa
radioatividade. Tu te ris, amiga
e me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo
de morrer. Interiormente
procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama…"
Digo-me, para me convencer, enquanto sinto
teus seios despontarem em minhas mãos
e se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida
imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias
fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados
de Pavlov. Depois, sorrindo
silencias. Odeio o teu silêncio
que não me pertence, que não é
de ninguém: teu silêncio
povoado de memórias. Esbofeteio-te
e vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
e coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para
combinar bem as cores; em seguida
fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta
transfusão. Eu convalescente
começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me
traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas
só com o casaco do pijama e pousas
minha mão na tua perna. E então eu canto:
tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
corrói minha carne como um ácido! Teu signo
é o da destruição! Nada resta
depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
de todo o meu inútil, a causa
de minha intolerável permanência! Tu és
uma contrafação da aurora! Amor, amada
abençoada sejas: tu e a tua
impassibilidade. Abençoada sejas
tu que crias a vertigem na calma, a calma
no seio da paixão. Bendita sejas
tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas
os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face
dentro da grande treva da existência. Sim, mágica
é a face da que não quer senão o abismo
do ser amado. Exista ela para desmentir
a falsa mulher, a que se veste de inúteis panos
e inúteis danos. Possa ela, cada dia
renovar o tempo, transformar
uma hora num minuto. Seja ela
a que nega toda a vaidade, a que constrói
todo o silêncio. Caminhe ela
lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha
para o desconhecido – esse eterno par
com que começa e finda o mundo – ela que agora
longe de mim, perto de mim, vivendo
da constante presença da minha saudade
é mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga
a que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos
a minha amiga nunca superável
a minha inseparável inimiga.

Vinicius de Moraes

L'amour est cerise

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.










































(...)Lá no sul,onde nasci:o meu corpo dentro do corpo da minha mãe,sob a sua pele,encostado aos seus ossos;lá no sul,existem casas caiadas,existem campos,existem planícies que estão agora tão longe de mim e que,ao mesmo tempo,estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro dessa memória,na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois de eu nascer,a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da casa adormeceram.Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal.Tinha os pés descalços sobre a terra.Eram os últimos dias do verão.No centro do céu da noite,a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada.Os dedos da minha mãe eram grossos no momento em que,com ambas as mãos me levantou no ar,sobre a sua cabeça,na direcção da lua e disse:
Ò lua,ò luar,/eu fi-lo nascer/ajuda-mo tu a criar.
Eu era pequeno e branco.Nos olhos da minha mãe via-se os seus braços erguidos,via-se o meu corpo dentro do círculo branco da lua.
Nesta noite,antes e depois de nos separarmos,era essa mesma lua que existia no céu.Como a minha mãe,essa lua existia num lugar onde não a tentámos ver,mas sei agora que existia e saber isso é saber que o mundo é tão vasto.Agora,neste momento,não sei onde estás.Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.Agora,longe daqui,existe a terra do sul onde nasci.Estou parado e sei que vou recomeçar a caminhar.
Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu.Olho para as minhas botas e vejo uma altura de nevoeiro que começa a levantar-se do chão e a envolver-me lentamente os joelhos.Os pontos de luz que brilham no chão são mais vagos.E uma voz terrível e negra começa a atravessar-me.Não distingo as palavras que diz através de mim.Lentamente,levanto o olhar ao céu.Sobre mim,existe um lugar infinito e maior do que eu.Sobre mim,o céu desta manhã é o espaço infinito onde pode existir tudo aquilo que existe nomeu peito.Como a sombra pálida do meu coração,distingo no céu desta
manhã,no céu luminoso e baço do meu peito,a forma branca da lua.O dia nasceu sobre a noite e a noite continuou sob a luz cinzenta desta manhã.A noite feita com formas de fumo e de nevoeiro.Quando ainda era mesmo de noite e estavas ao meu lado,disseste:não podemos ser felizes.Eu desejava-te tanto.Eu via os teus olhos através do ar da noite,sabia que estavas a meu lado e sabia que nos íamos separar.Vi-te partir.Os teus passos a afastarem-te de mim.Eu estava parado perante o horror,o medo.Tu afastavas-te de mim.
Entravas em casa,como se saísses para sempre de mim.Saías para sempre de mim.O momento em que fechaste a porta:eu soterrado por todo o negro, todo o veneno negro.Uma faca infinita.Eu a perceber que ficarás para sempre fechada dentro dessa casa.Nunca,nunca mais poderás sair.A noite,a rodear-me,era o lugar negro onde existiam certezas terríveis:a morte,a morte de tudo.Entre as paredes das casas,a tua casa.Os vidros das tuas janelas fechadas refectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim,olhava para o lugar onde sabia que estavas,a casa que te continha e,no entanto,aquela casa era um lugar escuro,um poço,era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós.Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver.Eu desejava-te ainda.Agora,desejo-te ainda.Sei que existem cemitérios.Sei que a casa onde estás,o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas,a não te lembrares de mim,é um lugar de destroços.
Vivemos rodeados de cemitérios.Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não voltaremos a ver.No céu,a lua é a mesma que existia quando,deixando-te,caminhei pelas ruas desertas.Os meus passos na noite.Os meus passos e,lentamente,o dia a nascer sobre as coisas da noite.Lentamente,a noite fixa no seu lugar,nos objectos,nas casas,no céu,e o dia a envolvê-la como uma capa de luz cinzenta.Esta manhã lunar.Esta manhã que é uma manhã e que é ainda a noite.A lua neste céu branco.Pouso as pálpebras sobre os olhos.Vapor,nevoeiro.Os teus olhos eram um caminho.Os teus cabelos eram talvez um horizonte.Não sei como acreditámos que as palavras eram simples.
Sonhávamos e enganámo-nos.Sorrindo,mergulhávamos os lábios no veneno
quando pensámos que bebíamos o antídoto.(...)

José Luis Peixoto

take me home... cause I'm still in love you



take me home
you silly boy
put your arms around me
take me home
you silly boy
all the world's not round without you

I'm so sorry that I broke your heart
please don't leave my side
take me home
you silly boy
cause I'm still in love you

sábado, 25 de dezembro de 2010

Mas eu sei que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde para quase tudo


















































Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.




Maria do Rosário Pedreira

E não está sempre?

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Busco inspiração nos vestígios de ti que ainda perfumam o meu corpo































Busco inspiração nos vestígios de ti que ainda perfumam o meu corpo. Teus acordes, teimosamente dançam boleros em meu coração, avivando notas e compassos. O céu, esparramado de estrelas, focaliza-me sob a lente dessa saudade invasora que me veste.
A lua, parceira e cúmplice de nossas entregas, compactua com a minha solidão...os sons da noite silenciam, reverenciando minhas lembranças. Uma lágrima me acompanha...depois outra e mais outra. Pranto silente de quem vagueia insone entre duas taças de vinho, sorvendo tuas últimas palavras...meus lábios passeiam pela tua taça, talvez buscando degustar os verbos que não conjugaste, as frases que deixaste adormecidas num brinde a tua sensatez.
Será a minha saudade eterna? Dias amanhecem, mas a tua sombra, desconhece o passar do tempo, o bater ritmado das horas...estás em mim, nos meus rastros de solidão, nos meus olhares perdidos que ainda insistem em te ver e em lugares do meu corpo que eu não consigo identificar.
Fomos presas fáceis nas mãos que desenham o amor...tuas nuanças misturaram-se em uníssono às minhas, produzindo tons que faziam nossas almas sorrirem. Nossos corações se refestelaram num banquete que só os nossos olhos eram capazes de sentir...não nos importávamos com o amanhã ou com o mar de espinhos que cruzávamos, para brincarmos de felicidade. Descobri-me infinita na minha capacidade de amar em todos os átimos de segundos em que tuas mãos desnudavam meu coração.
Ainda agora é nítido o som dos teus abraços nos ocasos da minha pele...gostos que se misturam em meio às marcas dos beijos que te roubei. Minhas mãos, ainda trazem o mapa da tua pele, tatuado em cores de entrega...meus lábios, ainda têm vontade dos teus, sedentos, percorrendo trilhas, criando atalhos, trêmulos em descobertas. Teus desejos, navegavam em mergulhos abissais no meu mar, quando banhava-te em minhas águas tépidas, espiando meus arrepios e acordando meus prazeres. ..
Recordações de uma história que não foi vivida no mundo dos sentidos reais, mas também impossível de ser esquecida...imagens que continuam espalhadas nas noites de luar, em beijos guardados e nos pedaços de abraços que meu coração insiste em juntar. Meus olhos guardam capítulos a escrever, estrelas a contar...

Fernanda Guimarães

Frosty the snowman




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Pois para isso fomos feitos: para a esperança no milagre





















Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

O tigre e a neve

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Porque a vida de tempos a tempos é aborrecente mas há coisas que valem a pena




































Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Morais se tinha medo da morte.
O poeta respondeu com um sorriso:
- Não, minha filha. Tenho saudades da vida.
De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo. Estou certo que o meu pai anda chateadíssimo no cemitério, sem livros, sem música, sem oportunidades para ser desagradável. O meu avô, tão diferente do filho, já deve ter feito montes de amigos por lá, todos a comerem percebes à volta de uma mesa grande. E o meu tio Eloy joga às cartas com os outros, a sorrir de satisfação quando lhe saem naipes bons. Costumava inchar na cadeira, a olhar para eles, repetindo
- Muito bem, senhores oficiais
da mesma maneira que, se as coisas corriam mal, se lamentava
- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim
e vejo-o daqui, sem uma prega, elegantíssimo. A minha tia Madalena lê livros grossos, a minha tia Bia ensina piano e eu sinto medo de não haver papel, nem caneta, nem amigos, nem mulheres. Mas, voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá? Da minha filha Isabel ao levá-la a um museu para lhe encher de amor pela beleza os tenros neurónios:
- Estás a gostar?
- Acho um bocado aborrecente
e não tive coragem de dizer que também acho os museus um bocado aborrecentes. Não ligava muito aos quadros, ou antes não ligava um pito aos quadros mas, na época de eu criança, havia escarradores cromados, a cada dez telas, que me interessavam muitíssimo. O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e, não estou a brincar, envergonho-me disso. No transporte para o liceu sempre admirei os cavalheiros que tiravam um lenço muito bem dobrado da algibeira, o abriam numa lentidão preciosa, puxavam a alma dos pulmões, depositavam-na no lenço num gorgolejo de ralo, competente, profundo, examinavam a alma com satisfação, tornavam a dobrar o lenço e faziam o resto do trajecto com ela nas calças. Talvez seja por isso que nem lenço uso: quando me acho fungoso luto comigo mesmo para não limpar o nariz na manga: a maior parte das vezes consigo. Vou ter saudades daqueles que se assoam com dignidade e estrondo e dos outros, mais comuns, detentores de um poder de síntese que, desgraçadamente, me falta. Passa uma rapariga e eles, logo
- És muita boa
numa concisão admirável, a acotevelarem um sócio distraído
- Viste?
O sócio já só apanha a rapariga ao longe mas concorda por solidariedade
- Chega o verão e descascam-se logo
e o do poder de síntese remata
- Todas umas putas
que é um ponto final que não admite acrescentos, ei-las catalogadas em definitivo, de modo que se passa aos méritos da cerveja preta que, além de acabar com a sede, é óptima para tirar nódoas, seja na camisa, seja no estômago
- Até limpam as úlceras
limpam as úlceras e amortecem o presunto:
- Se as pessoas mamassem uma preta a meio da tarde ninguém adoecia.
Segue-se a inspecção da sola do sapato
- Olha-me para a porcaria deste buraco aqui
e um discurso acerca das fragilidades e misérias do cabedal. Terei saudades disto? Do senhor da mercearia ao pé de mim vou ter de certeza. Está sempre sozinho na loja, atrás do balcão, educadíssimo. Se lhe comprar um maço de cigarros e disser
- Obrigado
responde de imediato
- Obrigado somos nós
num tom papal, que me leva a imaginá-lo cercado de criaturas invisíveis para mim mas óbvias para ele, uma multidão de espectros sobre os quais reina com benevolência. Tem sobrancelhas grossíssimas que não vão inteiramente com os seus gestos fidalgos. Nunca vi ninguém entrar na mercearia a não ser eu. Mentira: uma ocasião estava lá uma velhota que comprou dois pêssegos, a contar o dinheiro como se estivesse a despedir-se para sempre de um filho único. Lembro-me que fitou as moedas, até elas se sumirem na gaveta, numa ternura que me rasgou ao meio o coração. Depois sumiu-se numa portinha ao lado, com uma pantufa no pé esquerdo e uma bota no direito. O degrau da portinha levou-lhe um quarto de hora a escalar. O senhor da mercearia, esquecido do
- Obrigado somos nós
abriu-me os horizontes
- É a dona Esperança que já foi muito rica.
Foi muito rica e agora um pêssego, uma sopinha talvez, os restos da riqueza no prego. Terei saudades disto, também? Para citar a Isabel a vida, de tempos a tempos, é aborrecente. Será que, há séculos, a dona Esperança muito boa? Será que o marido cuspia em condições? É pouco provável porque o marido, segundo o senhor da mercearia, doutor.
- Doutor de tribunais
especificou ele com admiração
- Doutor de tribunais
escutei eu já na rua. Penso que se o meu tio Eloy visse aquilo comentava
- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim.
Eu também não, tio, eu também não. E, já agora, quando Vinicius de Morais se referia a saudades da vida em que vida pensava?



António Lobo Antunes

Christmas Time

domingo, 12 de dezembro de 2010

Lisbon Story

e já não sei se sonhamos o mesmo sonho, ou se nos levantamos ao mesmo tempo para o amor, mas ainda te amo
























Antes de partir, talvez ainda não seja tarde para começares a regressar. Estou sozinho, ardo na memória das noites em que não te conhecia. E não sei se suportarei o peso do teu rosto ausente sobre o peito, tatuado; e talvez recorde a tua respiração enforcando-me, noite após noite, enquanto durmo. Tua mão escavou o desejo entorpecido nestas débeis veias, e já não sei se sonhamos o mesmo sonho, ou se nos levantamos ao mesmo tempo para o amor, mas ainda te amo.
Aliso tuas pálpebras durante as noites de vigia e sei que uma vida anterior à minha presença as feriu. No entanto, sinto que ainda és capaz de me olhar como se eu contemplasse o mar. De resto. Os dias acumulam-se uns sobre os outros, iguais, sob o negro esplendor do sol. E latejamos, além, onde nos perderemos para sempre.
As tuas mãos vestiram as minhas, e fizeram-nas voar de sedução em sedução. Mas, dentro das fotografias, erguem-se pirâmides de cintilantes ossos, pequenas nódoas de memórias, feixes de veias quebradas pelas chuvas… não, não é o solitário canto do noitibô que nos surpreende, nítido, persistente, mas sim o grito que há-de crescer do fundo de nós. E, com o tempo, as mãos, as tuas, cairão também no esquecimento… e delas apenas permanecerá uma sensação de ardor sobre a minha pele.
Mas se um dia voltares acorda-me, como inesperadamente me acordaste uma noite. Não me deixes dormir mais, desperta-me e tudo se iluminara num gesto, num sorriso teu. Talvez não seja tarde ainda para começarmos a regressar um ao outro. Basta beber o mel que sempre bebemos no sexo um do outro, e de novo sentir o turbilhão de alegria que nos despertava a meio da noite para o amor.
Os espelhos ainda nos devolvem a candura do que somos, mas também anunciam a cinza que sepultara os corpos, algures, num esquecimento e numa dor obscura de nós próprios. Temos de aprender a subjugar o destino à nossa vontade. Ainda é possível mergulhar nos espelhos e roubar-lhes os vestígios felizes de nossos rostos. Ainda é possível apagar as dolorosas manchas da memória e recuperarmos o rosto da alegria que nos pertenceu. É esse o nosso rosto, mesmo que seja morto.
Regressa. Regressa ao escorrer dos dedos enrolados no sexo, ao riso matinal dos corpos saciados, às nocturnas conversas das esplanadas, aos jogos de sedução, aos engates, ao murmúrio das vozes, à ofegante trepidação da manhã, regressa... regressa. Porque as palavras não te substituem e estão cheias de pústulas no coração das sílabas.
Regressa e oferece-te à preguiça triste de quem continua aqui, vivo, sorvendo a espiral da sua própria ausência. Regressa, peço-te, mesmo antes de partires. Regressa à voracidade do desejo, e à incendiada paixão dos nocturnos tigres.

Al Berto

sábado, 11 de dezembro de 2010

Born Under a Bad Sign

chegaste quando o fim sangrava dos meus braços




chegaste donde o medo tecia os meus cabelos
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia

era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos

chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita

chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora que a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguém
que eu próprio desconheço



Pedro Sena-Lino

sábado, 27 de novembro de 2010

Pensando em ti

Podem-me chamar piroso, mas gosto deste disco da menina, voz bonita, muito jazzy

Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.



















Já nos vimos várias vezes. Fomos apresentados num dos serões que costumava passar na casa do Francisco e da Joana quando ainda não se tinham divorciado, quando a Joana ainda não tinha partido um serviço inteiro de pratos fundos e terrinas na parede da sala, quando o Francisco ainda não passeava de mão dada com a Marta aos domingos na beira do rio. Não acredito que ela se lembre do momento em que fomos apresentados. Quando tento lembrar-me, sinto que misturo memórias com aquilo que imagino que possa ter acontecido. Foi um momento em que tentámos não estar. Esperámos por ouvir o nome um do outro, fez-se silêncio, e aproximámos  os rostos rapidamente, a simular o cumprimento que todos esperavam que trocássemos. Regressou o som das conversas, da televisão ligada e da música de um disco que era sempre escolhido pelo Francisco.  Depois, quando nos encontrávamos, sempre na casa do Francisco e da Joana, cumprimentávamo-nos à  chegada e à saída. No dia em que a Joana começou a partir pratos na parede da sala, deixámos de nos ver.

Até hoje de manhã. Estava atrasado para o meu encontro com o João. Saí de casa a correr. O pequeno-almoço foi uma maçã que agarrei e que guardei no bolso do casaco. Penteava-me com os dedos quando o elevador parou no segundo andar.  Desviei o olhar e disse bom dia. Conheço mal os meus vizinhos. Nunca fui a uma reunião de condomínio. Quando pedem dinheiro para pequenas obras ou para pagar algum serviço extra à senhora que lava as escadas, pago sem fazer perguntas.  Hoje de manhã, pelo reflexo do espelho, reconheci-a logo. Com o mesmo penteado que usava nos serões do Francisco  e da Joana, era ela que ia comigo a descer no elevador. A minha primeira reacção foi um embaraço tímido.
Não sabia se devia dizer-lhe alguma coisa. Não sabia se não seria ridículo dizer-lhe alguma coisa porque  não sabia se ela me reconhecia. Mas não tive tempo para prolongar estas dúvidas porque, no instante seguinte, de repente, o elevador parou. Encravou. Levantei o rosto para olhar para os números. Estávamos entre o primeiro andar e o rés-do-chão. Ao baixar o rosto, foi inevitável que parasse no rosto dela. Trocámos duas expressões sem  significado e ela tirou o telemóvel da mala. Descreveu a situação a uma amiga chamada Ana e perguntou-lhe se ela tinha o  número da senhora Fernanda, a vizinha da frente. Enquanto repetia os números, eu decorava-os. Desligou e ligou para o número da senhora Fernanda. Não estava em casa. Atendeu o marido, o senhor Alfredo.  Foi depois disso que começámos a ouvir barulhos nas escadas: vozes que não se conseguem compreender, passos. Já são quase duas horas da tarde. Ainda não dissemos nada um ao outro. As vezes, os nossos olhares cruzam-se. Não me  consigo lembrar do nome dela. Não sei se ela se lembra de mim. Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.


José Luis Peixoto

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Contra as regras do que somos, vou chamar-te "meu amor"


















Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.


Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.



Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

As time goes by

porque é por ti que vivo é por ti que nasço porque amo o ouro vivo do teu rosto





































Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto


António Ramos Rosa

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Over the rainbow




que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias e esta ternura dos olhos que se dão





































Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.




José Gomes Ferreira

Eu vi este povo lutar

Operários em Construção






























Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção



Vinicius de Moraes

terça-feira, 23 de novembro de 2010

La superbe

Longas manhãs te esperei, perdi a conta






















Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa , por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhã
se lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam , se não és tu, á porta?

Fernando Assis Pacheco

domingo, 21 de novembro de 2010

Looking For The Heart Of Saturday Night

A versão da Madeleine Peyroux faz parte do disco Female Tribute to Tom Waits




Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos quando toco o teu corpo e habito em ti


















Nunca houve palavras para gritar a tua ausência

Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto doía no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?

Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua.


Joaquim Pessoa

sábado, 20 de novembro de 2010

You're missing




Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Breathe me

Uma das melhores séries de sempre... o melhor final de sempre


Ser tua sombra, tua sombra, apenas





















Quero uma solidão, quero um silêncio,
uma noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo - libertar-me

das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pulutantes de enredos e tropeços,

quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.

Ser tua sombra, tua sombra, apenas,
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.

Falar contigo pelo deserto.


Cecilia Meireles

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Bird

O meu compromisso










































O meu compromisso não é com a memória
com os pedaços de pele
que deixei na boca dos cães
com a inquietação das ondas
que me temperaram de sal e tempestade

O meu compromisso não é com o riso
nem com os gritos nem com as lágrimas
O meu compromisso não é com os olhares
com os murmúrio com o vento

O meu compromisso não é contigo
por mais que eu te ame
e sejas o voo da minha liberdade

O meu compromisso místico e solene
é com o corpo exacto fugidio sedutor
equívoco imperativo do não dito

O meu compromisso
é com as palavras.

Rosa Lobato Faria

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Porque vem até mim todo o amor de repente quando me sinto triste, e te sinto tão longe?









































Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro em que sempre pegamos ao crepúsculo,
e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.

Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.


Pablo Neruda

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Avec les Temps

Depois de um dueto com Elvis Costello, desta vez um duplo disco fantástico com o pianista Brad Mehldau (estarão em Portugal em Março)

arranquei de mim a morada que eras tu


























estive tão longe de ti
que não pensei sequer lembrar o teu nome
percorri distâncias escuras, estradas imóveis
onde circulava o peso sem cor do esquecimento
e se curvavam as pedras à boca do destino

vezes houve em que dormi sem estrelas
num vazio de astros que me congelava as veias
e me amortecia a vida em poços de água
que a vida não podia tocar - rondavam os lobos

e contava os dias, riscando a minha loucura
nas folhas secas do caminho, escondendo a réstia de sonho
entre as raízes ainda vibrantes das árvores rugosas
conhecia por vezes o movimento quase imperceptível
das grandes estações internas, o estalar da seiva,
o tambor duro onde vinha cantar a melancolia

a solidão assustava-me, queimava-me a pele
no vermelhíssimo lume das mãos dos mortos
quero dizer-te que não mais vi ternura
que os meus pés ganharam idade a um ritmo
que não pude conter, acompanhar, escrever-te

sim, fiz-me não te escrever
para que o meu corpo não ouvisse o vento
e as ondas fossem quebrar ao centro dos oceanos
para que uma palavra não pousasse no teu rosto
e levasse a luz dos teus olhos e a vida nos teus lábios

arranquei de mim a morada que eras tu
desisti dos pássaros, afundei barcos, lâminas,
apaguei o calor dos porões como se uma vela
pudesse perigosamente insistir na permanência
desse mundo que era a minha voz, éramos nós

éramos nós, choro
sinto no enrolar dos dedos o ínfimo do teu nome
a abertura impossível de uma janela de avelãs
as avelãs que nos escutavam (lembras-te?)
enquanto lá fora, fora de tudo, a neve
se abatia sobre o dorso antigo das nossas mães
sobre a dor vencida no embalo dos bebés

estive tão longe de ti
mas deixa que agora te nomeie entre as nuvens
e traga para dentro de mim a pintura das tuas pálpebras
o aroma que era o teu corpo nas manhãs a dois
deixa que venha morrer junto de ti
no ventre do amor que prometemos ao infinito

Vasco Gato

domingo, 14 de novembro de 2010

Acho que a versão que o Tiago Rebelo estaria a pensar seria mais na versão original desta canção pelo Frankie Valli (esse mesmo, da canção do filme Grease), mas eu prefiro esta versão




Sentado ao balcão do bar do hotel, com um copo de uísque a rodar numa mão distraída, ansiando por um cigarro proibido, sente-se sozinho num país desconhecido, onde não tem senão umas supérfluas relações de trabalho.

Instalada num cadeirão confortável, à frente de uma mesa baixa onde há uma xícara de café vazia, meia tosta mista esquecida num prato pequeno, ela suspira incomodada com o seu próprio silêncio e com a falta de alguém com quem falar descontraidamente depois de um dia de reuniões exigentes. Tem um livro aberto com a capa para cima pousado no colo e nenhuma vontade de o ler. Naqueles momentos, o seu pensamento regressa sempre a um amor distante com quem foi feliz. Depois de várias tentativas falhadas, não voltou a sê-lo.

Ao fundo, um pianista caprichoso toca de olhos fechados para a sala quase vazia. A seu lado, num banco alto, uma mulher jovem embala com a voz a música que ele acompanha,

You’re just too good to be true
Can’t take my eyes off of you,
You’d be like Heaven to touch.
I wanna hold you so much.

Atrás do balcão, o empregado troca-lhe o copo vazio. Ele bebe um gole, volta-se no banco. Ao fazê-lo, os seus olhos fixam-se nela, sentada à mesa, e repara que tem no colo um livro português. Ela sente-se observada, levanta a cabeça e os seus olhos cruzam-se com os dele. Ele cumprimenta-a com um leve aceno de cabeça mudo. Ela corresponde-lhe com um sorriso cerimonioso, desviando logo o olhar.

Enquanto ele se aproxima, ela corrige instintivamente uma madeixa do cabelo, alisa a saia com a mão. Acercando-se dela, diz-lhe, apontando para o livro, reparei que é portuguesa. Também sozinha neste país estranho? Também, admite ela, encolhendo os ombros numa fatalidade. Posso fazer-lhe companhia?, pergunta-lhe, ao que ela responde indicando-lhe o cadeirão vazio ao seu lado. Ele senta-se, apresenta-se, ela está a tomar notas mentalmente, percebe que veste um fato de qualidade, camisa a condizer com a gravata, tudo com muito bom gosto, que não usa aliança.

Ele fala sem deixar cair a conversa, enquanto pensa vamos lá ver o que isto dá. Ela pensa o mesmo, acha-lhe graça, mas decide logo que não quer mais aventuras de uma noite só.

Ao fundo, a mulher canta,

But if you feel like I feel,
Please let me know that it’s real.
You’re just too good to be true.
Can’t take my eyes off you.

No final da noite separam-se no elevador com um pequeno-almoço combinado e ela vai para o quarto entusiasmada, a cantarolar a mesma música, a perguntar-se se um dia aquela vai ser uma música para relembrarem os dois o início de alguma coisa que foi mais do que isso.


Tiago Rebelo

sábado, 13 de novembro de 2010

One From the Heart

Um dos filmes da minha vida. Até certa altura foi mesmo "o" filme da minha vida.
A versão de Natassja Kinski faz parte dos discos Female Tribute to Tom Waits

Acordo cada dia com um corpo que não aquele com que me deitei


















Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente

Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui

Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará

Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre

Mas haverá quem possa negar, que querer é poder E o nunca é uma invenção




Reajo a esse incómodo olhar, nem quero acreditar
Que vem na minha direcção
Há dias que estou a reparar, nem queres disfarçar
Roubas a minha atenção
Aprecio o teu dom de tornar, nao clico o meu falar
Numa total confusão
Confesso que só de imaginar, que te vou encontrar
Me sobe à boca o coração

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda, perdido no teu olhar

É certo que sempre ouvi dizer, que do querer ao fazer
Vai um enorme esticão
Mas haverá quem possa negar, que querer é poder
E o nunca é uma invenção
Bem sei que este nosso cruzar, pode até nem passar
Dum capricho sem valor
Mas porque raio hei-de evitar, se esse teu ar
Me trouxe ao sangue calor

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda, perdido no teu olhar

Virgem Suta

Vem comigo praticar essa arte imemorial de quem espera











































Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

Iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

Vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

Vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


Al Berto

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Your Song

para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer
























Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

The English Patient

Porque há filmes a que me apetece sempre voltar

O amor não serve de nada




"Todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada . Ficaram só os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
Os domingos e as noites que passamos a fazer planos não foram suficientes e foram demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
Sei que nos amamos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora não irei negar isso. Não irei negar isso nunca, que te amei, nem mesmo quando estiver deitado, nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder ."


José Luís Peixoto

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Le Deserteur

Mas porque assim te invento e já te troco as horas





































Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido

os dedos que
me vogam nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...

Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...

Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei

para o vácuo
em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.

Maria Teresa Horta

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Shoot Me Down

se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos para guardar o teu corpo















































Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos;
se ao menos percebesses que eram nossos
todos os bancos de todos os jardins;
se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo
que ambos empunhamos na cidade clandestina
Quando as manhas cheiravam a óleo e a flores
e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo;
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos.

Joaquim Pessoa

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Jersey Girl

Já está por aqui esta canção na versão Holly Cole, mas é a versão pelo seu criador a que mais gosto


Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem





Nunca falámos muito

(acho que nunca falámos nada)

e não sinto necessidade de começar agora. O que lhe poderia dizer? -existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras, dúvidas, esperanças, perguntas, a curiosidade, por exemplo, de saber o que sentiu quando eu estava em coma com a meningite, você me fez uma punção lombar e andou a procurar os micróbios no microscópio. O meu filho morre? Não morre? Foi isso que sentiu? A angústia? O medo? E depois, na altura em que os bacilos da tuberculose me vieram aos pulmões? Disso lembro-me bem, da minha impaciência, da minha zanga com o mundo, de me trazerem presentes e eu os jogar no chão. Nunca falámos muito

(acho que nunca falámos nada)

dou por mim agora a olhar a sua cara devastada, os olhos fechados, os dedos que não cessam de mover-se, o seu frio constante e fico calado a vê-lo. Você abre os olhos

(continua a surpreender-me que sejam azuis)

alcança-me para ali sentado, no quarto que foi o meu e de onde

agora você quase não sai, interroga-me

- Tens escrito?

não respondo

(o que lhe importa isso?)

o azul dissolve-se em mais uns minutos de sonolência, toma a abrir os olhos e então sim, conversamos um bocado. De Schubert. Dos Impromptus. Na janela a figueira.

Sonolência de novo. O azul regressa: Sá de Miranda em lugar de Schubert, um soneto que, aliás, você cita de maneira errada. Mas o verso a seguir está correcto:

incertos muito mais que ao vento as naves

e os dedos em paz. Terá adormecido? Não, porque me informa

- Tenho uma data de anos

e tem: a boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos?

- Tenho uma data de anos

e é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos.

Chega-lhe à ideia a Floresta Negra, o Professor Vogt:

- Queria que eu ficasse lá a trabalhar com ele

o Professor Vogt e a sua colecção de cérebros cortados às fatias:

- Há vinte e quatro anos que não faço clínica

e concordo que uma data de anos. A infância em Tânger, o meu avô. Murmura

- O meu pai

e ao articular

- O meu pai

espanto-me como em criança me espantava que o meu pai tratasse outra pessoa por pai. Pai era você. O meu avô era avô. E, dentro de mim, eu exigia as coisas assim simples, claras. Na janela a figueira.

Havia duas mas a outra, a mais antiga, morreu. Sobrou esta. Sobramos nós dois no que foi o meu quarto, com a fotografia enorme de Charlie Parker na parede. Então penso que você pode ter todos os defeitos do mundo mas era de certeza o único pai que pregou no quarto de um filho adolescente o retrato de Charlie Parker. A expressão de Charlie Parker lembra-me a frase de uma carta de Van Gogh ao irmão: sofremos por conta de uma porção de malandros e safados.

Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem. O que é que a puta desta figueira espera para dar folhas, flores? Schubert. Sá de Miiranda. Os dedos parados. Então levanto-me e saio do quarto. A minha mãe

- O que achaste do pai?

e ao descer as escadas para a rua dou-me conta de que afinal não existe nada debaixo dos tais anos de silêncio. Quero dizer, quase nada: existe um filho cheio de coisas que prefere não transformar em palavras enquanto, muito ao longe, um saxofone principia a tocar.


António Lobo Antunes

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Falsas recordações felizes





O passado de Gonçalo começou a desmoronar-se à mesa de um bar, no Bairro Alto, várias cervejas depois da meia-noite, quando ao riso sucedeu o cansaço. Tinham discutido o namoro de Penélope Cruz com Tom Cruise. A conferencia sobre racismo em Durban. As vantagens e os perigos do casamento. Então, em meio ao fumo amargo que enchia a sala, alguém lançou um novo tema – o Primeiro Beijo.
«Nunca me esquecerei», disse ele. «Foi em mil novecentos e setenta e oito, no dia em que fiz dezasseis anos. Tinha ido a um concerto do Chico Buarque com alguns colegas de liceu. O Chico começou a cantar o Eu te Amo, que aliás não se presta muito para uma declaração de amor, é antes uma canção de despedida. Lembram-se?...»
Cantarolou com voz rouca:
«Se nós, nas travessuras das noites eternas / já confundimos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo seguir. / Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunçada do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu…»
Calou-se um momento, o olhar absorto, enquanto enrolava nostálgico uma madeixa do cabelo. Já não lhe restava muito cabelo de forma que aquele tique era um pouco deprimente. Suspirou.
«E então ela encostou a cabeça no meu ombro e eu beijei-a.»
«É bonito», reconheceu um dos amigos, critico de música, um tipo que se gabava de saber quase tudo sobre tudo, ou, em alternativa, tudo sobre quase tudo – e realmente sabia. A erudição dele incomodava os outros. «Seria ainda mais bonito se fosse verdade. Isso não pode ter acontecido em mil novecentos e setenta e oito. O Chico Buarque só criou essa canção, em parceria com o Tom Jobim, dois anos mais tarde.»
Gonçalo olhou-o perturbado:
«Disparate! Tenho a certeza que o Chico cantou essa música na noite em que fiz dezasseis anos, portanto em mil novecentos e setenta e oito. Foi nessa noite que comecei a namorar com a Marisa. Infelizmente nunca mais soube dela. Vocês lembram-se da Marisa, não se lembram?»
Não, ninguém se lembrava da Marisa. A Gonçalo, todavia, bastava fechar os olhos para voltar a vê-la. Era uma rapariga alta e flexível, com grandes olhos negros, melancólicos, e um alheamento pelas coisas do mundo que a fazia parecer imaterial. Apetecia ao mesmo tempo protege-la e ultrajá-la. Confrontados com a descrição de Gonçalo todos lamentaram não ter conhecido Marisa. Na mesa ninguém se lembrava dela. Pior: nem sequer se lembravam dele por essa altura.
«Só te conheci em mil novecentos e noventa», precisou o crítico de música. «Num concerto da Cesária Évora.»
Aquilo era demais. Gonçalo levantou-se indignado:
«Nunca estive num concerto da Cesária. Nunca!»
Ninguém disse nada. Toda a gente sabia que o critico de música jamais se enganava nos factos. Menos ainda nas datas. Gonçalo tirou uma nota do bolso e colocou-a sobre a mesa.
«Eu já vou…»
Nenhum dos amigos procurou detê-lo. Gonçalo saiu aflito para a noite mansa. Qual era a sua recordação mais antiga? Esforçou-se um pouco. Recordava-se de ter assistido pela televisão à ocupação de Goa pelas tropas indianas. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo, ainda não andava na escola. Voltou ao bar e perguntou ao crítico de música:
«Olha lá, sabes dizer-me quando é que perdemos Goa?»
O outro nem pestanejou:
«A dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e um.»
Gonçalo respirou fundo. Nessa data ainda nem era nascido. Seria possível que todas as suas memórias fossem apócrifas? Voltou a sentar-se, tremulo, e pediu mais uma cerveja. Se não podia confiar nas próprias recordações não havia nada em que pudesse confiar. O crítico de música citou Buñuel:
«Uma vida sem memória não é uma vida.»
Depois percebeu que aquilo não tinha nada de animador e tentou emendar:
«O teu caso não me parece tão grave. Tens uma vida. É falsa, sim, mas afinal de contas é uma vida.»
«Mais valem falsas recordações felizes», acrescentou um outro, «do que lembranças autenticas e desgraçadas.»
Gonçalo estava inconsolável:
«Vocês acham que eu nunca beijei a Marisa?»
Ninguém respondeu. Talvez tivessem bebido demais. Talvez fosse demasiado tarde. Talvez achassem realmente que ele nunca beijara Marisa.


José Eduardo Agualusa

não me digas quem és nem ao que vens. Decido eu




















Não me diga a que vens
Deixa-me adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou.

É longe a tua casa?
Dou-te a minha:

leio nos teus olhos o cansaço do dia que te venceu; e, no teu rosto, as sombras contam-me o resto da viagem.

Anda,

vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo — é um
destino sem dor e sem memória. Tens

sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja — morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens.
Decido eu




Maria do Rosário Pedreira

Mujeres de Água

Do disco Mujeres De Água, um projecto de Javier Limón e que é dedicado às mulheres iranianas perseguidas por cantarem.

e diz-me o que de mim amaste noutros corpos noutras camas noutra pele





















desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
- e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

Alice Vieira