terça-feira, 17 de maio de 2011

e o esquecimento acredita é a mais lenta das feridas mortais

















Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

Alice Vieira

Portugal alcatifado

Gostei dos supositórios reboredo, não precisa meter o dedo

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo



















Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Quantos são hoje? Nunca sei às que ando, confundo tudo, perco-me sempre, os dias, as horas, às vezes cumprimento pessoas que não conheço, há uma semana ou isso entrei num antiquário, sentei-me a uma mesa D. João V e quando a senhora da loja veio, de uns armários franceses ou lá o que era, pedi-lhe que me servisse um uísque. Uma senhora com mais pulseiras que tu e anéis caros, de maquilhagem a lutar com a idade e a perder. Ficou a olhar para mim de cara ao lado. Depois perguntou-me se eu estava bêbado e depois começou a medir a distância entre ela e a porta a fim de chamar por socorro. Numa das paredes paisagens emolduradas a talha, o retrato de uma viscondessa decotada, estampas de cavalos com legendas em francês. A viscondessa usava um anel no indicador rechonchudo e tinha cara de jantar bicos de rouxinol todos os dias, servindo-se dos talheres como se cada dedo fosse um mindinho, desses que a gente enrola para beber o café. A minha irmã, pelo menos, enrola. Eu sou mais para o género de o esticar, tipo antena. Educações. Tu não enrolas nem esticas, deixas a mão inerte na minha. Não te apetece apertar-me, não tens vontade de ser terna? Gostava que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava-te quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo. Segundo a minha irmã sou só parvo. A propósito de tudo e de nada
- És tão parvo
e eu, mudo, a dar-lhe razão no fundo de mim, lembrando-me que na escola era um castigo com a Geografia, capitais e rios e países tudo misturado. Continuo a misturar. Não me peças, por exemplo, para mostrar a Noruega num mapa. E conheci em rapaz uma norueguesa na praia, a pôr creme nas costas de uma amiga. Passados os primeiros embaraços pôs-me a mim também. Espero que tivesse os mindinhos enrolados. Ofereci-me para lhe pôr a ela. Por gestos fez que não com a cabeça e o brinco esquerdo caiu. Acho que começou a ceder quando o procurámos ambos na areia, uma argola com coisinhas penduradas. O que me atrai nos brincos é as mulheres terem-nos, é o momento em que os prendem na orelha, de queixo esticado e olhos vazios. A mesma expressão, aliás, ao procurarem as chaves na carteira. Parece que se ausentam. Depois voltam a estar ali ao rodarem a fechadura. Esfrego sempre os sapatos no capacho antes de entrar
(educações)
e avanço devagarinho pelo tapete quase persa fora à medida que lhes percebo um expressão de
- Como é que me vejo livre deste?
a aumentar, a aumentar. Também é nisso que pensas, responde?
- Como é que me vejo livre deste?
e a tua mão cada vez mais pequena sobre a minha, o teu lábio inferior a cobrir o superior ou seja
- Para que me fui meter num sarilho?
as tuas pernas longe, o teu corpo longe, a tua bochecha longe a gritar em silêncio
- Deus queira que não me faça uma festa
os olhinhos a espiarem de banda, alerta, assustados, com receio de mim, eu que não faço mal a uma mosca, nasci pacífico, hei-de morrer pacífico e no intervalo entre o nascimento e a morte sou um paz de alma. Nem entendo a reacção da senhora do antiquário, se calhar neta da viscondessa do anel. Ou bisneta. Ou filha, que a maquilhagem, coitada, pouco conseguia. Deve haver dúzias de centenários por aí, refugiados atrás dos cremes, vacilando nos joelhos magros. Dentaduras postiças a dar com um pau, aparelhos para ouvir, lentes de contacto que se esforçam, se esforçam
- Não te vejo bem rapaz
pobres misérias cuidadosamente ocultas. Ainda sou novo apesar da hérnia, devo ter mais uns tempitos à minha frente e o que farei com eles? Sento-me aqui, mendigo a tua mão ou aborreço-me sozinho? Não leio jornais, não me distraio com nada, aqueço um prato desses já feitos, lavo a loiça, volto ao sofá, derrotado. Ignoro quem me derrotou. Se calhar eu mesmo, se calhar a minha irmã, distantíssima agora
- Tão parvo
chegada dos limbos da infância com as suas sardas e a pupila torta que o doutor não curou. Na minha opinião a pupila torta não me achava tão parvo assim, compreendia-me. Há uma parte nos outros, defeituosa, frágil, que me compreende, se enternece comigo. Quantos são hoje? Não digas nada. Tanto faz. Um dia qualquer, não me ralo com isso: a minha vida feita de dias quaisquer a amontoarem-se uns sobre os outros, indistintos, moles, idênticos. A fotografia da minha mãe na estante, a censurar-me. De quê? Que mal fiz eu? Chamo-me João. Era para ser Arnaldo como o meu padrinho mas o meu pai insistiu no João.
De vez em quando sorria-me
- João
e ficava a repetir
- João
numa cisma contente. Dás-me licença que te beije? Não? Não te vás embora ainda, deixa-te estar. Apesar de tudo passámos um bocado agradável, não foi? A mim agradou-me. Gosto do teu cheiro. Se te apetecer voltar toca a campainha três vezes e carrego naquele botão que abre a porta da rua. E se me avisares com antecedência compro um bolo. Quando não estiveres cá e me sentir sozinho como as migalhas que sobrarem. Vou contar-te um segredo: há alturas em que as migalhas ajudam


António Lobo Antunes

Será que amanhã ainda existe para ti, ou ao ver-te nos olhos te beijei e morri.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Palavras, ou luz ainda?




















Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.

Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras? este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?


Eugénio de Andrade

O destino é um segredo