sábado, 27 de novembro de 2010

Pensando em ti

Podem-me chamar piroso, mas gosto deste disco da menina, voz bonita, muito jazzy

Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.



















Já nos vimos várias vezes. Fomos apresentados num dos serões que costumava passar na casa do Francisco e da Joana quando ainda não se tinham divorciado, quando a Joana ainda não tinha partido um serviço inteiro de pratos fundos e terrinas na parede da sala, quando o Francisco ainda não passeava de mão dada com a Marta aos domingos na beira do rio. Não acredito que ela se lembre do momento em que fomos apresentados. Quando tento lembrar-me, sinto que misturo memórias com aquilo que imagino que possa ter acontecido. Foi um momento em que tentámos não estar. Esperámos por ouvir o nome um do outro, fez-se silêncio, e aproximámos  os rostos rapidamente, a simular o cumprimento que todos esperavam que trocássemos. Regressou o som das conversas, da televisão ligada e da música de um disco que era sempre escolhido pelo Francisco.  Depois, quando nos encontrávamos, sempre na casa do Francisco e da Joana, cumprimentávamo-nos à  chegada e à saída. No dia em que a Joana começou a partir pratos na parede da sala, deixámos de nos ver.

Até hoje de manhã. Estava atrasado para o meu encontro com o João. Saí de casa a correr. O pequeno-almoço foi uma maçã que agarrei e que guardei no bolso do casaco. Penteava-me com os dedos quando o elevador parou no segundo andar.  Desviei o olhar e disse bom dia. Conheço mal os meus vizinhos. Nunca fui a uma reunião de condomínio. Quando pedem dinheiro para pequenas obras ou para pagar algum serviço extra à senhora que lava as escadas, pago sem fazer perguntas.  Hoje de manhã, pelo reflexo do espelho, reconheci-a logo. Com o mesmo penteado que usava nos serões do Francisco  e da Joana, era ela que ia comigo a descer no elevador. A minha primeira reacção foi um embaraço tímido.
Não sabia se devia dizer-lhe alguma coisa. Não sabia se não seria ridículo dizer-lhe alguma coisa porque  não sabia se ela me reconhecia. Mas não tive tempo para prolongar estas dúvidas porque, no instante seguinte, de repente, o elevador parou. Encravou. Levantei o rosto para olhar para os números. Estávamos entre o primeiro andar e o rés-do-chão. Ao baixar o rosto, foi inevitável que parasse no rosto dela. Trocámos duas expressões sem  significado e ela tirou o telemóvel da mala. Descreveu a situação a uma amiga chamada Ana e perguntou-lhe se ela tinha o  número da senhora Fernanda, a vizinha da frente. Enquanto repetia os números, eu decorava-os. Desligou e ligou para o número da senhora Fernanda. Não estava em casa. Atendeu o marido, o senhor Alfredo.  Foi depois disso que começámos a ouvir barulhos nas escadas: vozes que não se conseguem compreender, passos. Já são quase duas horas da tarde. Ainda não dissemos nada um ao outro. As vezes, os nossos olhares cruzam-se. Não me  consigo lembrar do nome dela. Não sei se ela se lembra de mim. Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.


José Luis Peixoto

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Contra as regras do que somos, vou chamar-te "meu amor"


















Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.


Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.



Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

As time goes by

porque é por ti que vivo é por ti que nasço porque amo o ouro vivo do teu rosto





































Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto


António Ramos Rosa

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Over the rainbow




que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias e esta ternura dos olhos que se dão





































Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.




José Gomes Ferreira

Eu vi este povo lutar

Operários em Construção






























Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção



Vinicius de Moraes

terça-feira, 23 de novembro de 2010

La superbe

Longas manhãs te esperei, perdi a conta






















Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa , por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhã
se lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam , se não és tu, á porta?

Fernando Assis Pacheco

domingo, 21 de novembro de 2010

Looking For The Heart Of Saturday Night

A versão da Madeleine Peyroux faz parte do disco Female Tribute to Tom Waits




Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos quando toco o teu corpo e habito em ti


















Nunca houve palavras para gritar a tua ausência

Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto doía no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?

Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua.


Joaquim Pessoa

sábado, 20 de novembro de 2010

You're missing




Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Breathe me

Uma das melhores séries de sempre... o melhor final de sempre


Ser tua sombra, tua sombra, apenas





















Quero uma solidão, quero um silêncio,
uma noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo - libertar-me

das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pulutantes de enredos e tropeços,

quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.

Ser tua sombra, tua sombra, apenas,
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.

Falar contigo pelo deserto.


Cecilia Meireles

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Bird

O meu compromisso










































O meu compromisso não é com a memória
com os pedaços de pele
que deixei na boca dos cães
com a inquietação das ondas
que me temperaram de sal e tempestade

O meu compromisso não é com o riso
nem com os gritos nem com as lágrimas
O meu compromisso não é com os olhares
com os murmúrio com o vento

O meu compromisso não é contigo
por mais que eu te ame
e sejas o voo da minha liberdade

O meu compromisso místico e solene
é com o corpo exacto fugidio sedutor
equívoco imperativo do não dito

O meu compromisso
é com as palavras.

Rosa Lobato Faria

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Porque vem até mim todo o amor de repente quando me sinto triste, e te sinto tão longe?









































Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro em que sempre pegamos ao crepúsculo,
e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.

Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.


Pablo Neruda

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Avec les Temps

Depois de um dueto com Elvis Costello, desta vez um duplo disco fantástico com o pianista Brad Mehldau (estarão em Portugal em Março)

arranquei de mim a morada que eras tu


























estive tão longe de ti
que não pensei sequer lembrar o teu nome
percorri distâncias escuras, estradas imóveis
onde circulava o peso sem cor do esquecimento
e se curvavam as pedras à boca do destino

vezes houve em que dormi sem estrelas
num vazio de astros que me congelava as veias
e me amortecia a vida em poços de água
que a vida não podia tocar - rondavam os lobos

e contava os dias, riscando a minha loucura
nas folhas secas do caminho, escondendo a réstia de sonho
entre as raízes ainda vibrantes das árvores rugosas
conhecia por vezes o movimento quase imperceptível
das grandes estações internas, o estalar da seiva,
o tambor duro onde vinha cantar a melancolia

a solidão assustava-me, queimava-me a pele
no vermelhíssimo lume das mãos dos mortos
quero dizer-te que não mais vi ternura
que os meus pés ganharam idade a um ritmo
que não pude conter, acompanhar, escrever-te

sim, fiz-me não te escrever
para que o meu corpo não ouvisse o vento
e as ondas fossem quebrar ao centro dos oceanos
para que uma palavra não pousasse no teu rosto
e levasse a luz dos teus olhos e a vida nos teus lábios

arranquei de mim a morada que eras tu
desisti dos pássaros, afundei barcos, lâminas,
apaguei o calor dos porões como se uma vela
pudesse perigosamente insistir na permanência
desse mundo que era a minha voz, éramos nós

éramos nós, choro
sinto no enrolar dos dedos o ínfimo do teu nome
a abertura impossível de uma janela de avelãs
as avelãs que nos escutavam (lembras-te?)
enquanto lá fora, fora de tudo, a neve
se abatia sobre o dorso antigo das nossas mães
sobre a dor vencida no embalo dos bebés

estive tão longe de ti
mas deixa que agora te nomeie entre as nuvens
e traga para dentro de mim a pintura das tuas pálpebras
o aroma que era o teu corpo nas manhãs a dois
deixa que venha morrer junto de ti
no ventre do amor que prometemos ao infinito

Vasco Gato

domingo, 14 de novembro de 2010

Acho que a versão que o Tiago Rebelo estaria a pensar seria mais na versão original desta canção pelo Frankie Valli (esse mesmo, da canção do filme Grease), mas eu prefiro esta versão




Sentado ao balcão do bar do hotel, com um copo de uísque a rodar numa mão distraída, ansiando por um cigarro proibido, sente-se sozinho num país desconhecido, onde não tem senão umas supérfluas relações de trabalho.

Instalada num cadeirão confortável, à frente de uma mesa baixa onde há uma xícara de café vazia, meia tosta mista esquecida num prato pequeno, ela suspira incomodada com o seu próprio silêncio e com a falta de alguém com quem falar descontraidamente depois de um dia de reuniões exigentes. Tem um livro aberto com a capa para cima pousado no colo e nenhuma vontade de o ler. Naqueles momentos, o seu pensamento regressa sempre a um amor distante com quem foi feliz. Depois de várias tentativas falhadas, não voltou a sê-lo.

Ao fundo, um pianista caprichoso toca de olhos fechados para a sala quase vazia. A seu lado, num banco alto, uma mulher jovem embala com a voz a música que ele acompanha,

You’re just too good to be true
Can’t take my eyes off of you,
You’d be like Heaven to touch.
I wanna hold you so much.

Atrás do balcão, o empregado troca-lhe o copo vazio. Ele bebe um gole, volta-se no banco. Ao fazê-lo, os seus olhos fixam-se nela, sentada à mesa, e repara que tem no colo um livro português. Ela sente-se observada, levanta a cabeça e os seus olhos cruzam-se com os dele. Ele cumprimenta-a com um leve aceno de cabeça mudo. Ela corresponde-lhe com um sorriso cerimonioso, desviando logo o olhar.

Enquanto ele se aproxima, ela corrige instintivamente uma madeixa do cabelo, alisa a saia com a mão. Acercando-se dela, diz-lhe, apontando para o livro, reparei que é portuguesa. Também sozinha neste país estranho? Também, admite ela, encolhendo os ombros numa fatalidade. Posso fazer-lhe companhia?, pergunta-lhe, ao que ela responde indicando-lhe o cadeirão vazio ao seu lado. Ele senta-se, apresenta-se, ela está a tomar notas mentalmente, percebe que veste um fato de qualidade, camisa a condizer com a gravata, tudo com muito bom gosto, que não usa aliança.

Ele fala sem deixar cair a conversa, enquanto pensa vamos lá ver o que isto dá. Ela pensa o mesmo, acha-lhe graça, mas decide logo que não quer mais aventuras de uma noite só.

Ao fundo, a mulher canta,

But if you feel like I feel,
Please let me know that it’s real.
You’re just too good to be true.
Can’t take my eyes off you.

No final da noite separam-se no elevador com um pequeno-almoço combinado e ela vai para o quarto entusiasmada, a cantarolar a mesma música, a perguntar-se se um dia aquela vai ser uma música para relembrarem os dois o início de alguma coisa que foi mais do que isso.


Tiago Rebelo

sábado, 13 de novembro de 2010

One From the Heart

Um dos filmes da minha vida. Até certa altura foi mesmo "o" filme da minha vida.
A versão de Natassja Kinski faz parte dos discos Female Tribute to Tom Waits

Acordo cada dia com um corpo que não aquele com que me deitei


















Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente

Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui

Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará

Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre

Mas haverá quem possa negar, que querer é poder E o nunca é uma invenção




Reajo a esse incómodo olhar, nem quero acreditar
Que vem na minha direcção
Há dias que estou a reparar, nem queres disfarçar
Roubas a minha atenção
Aprecio o teu dom de tornar, nao clico o meu falar
Numa total confusão
Confesso que só de imaginar, que te vou encontrar
Me sobe à boca o coração

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda, perdido no teu olhar

É certo que sempre ouvi dizer, que do querer ao fazer
Vai um enorme esticão
Mas haverá quem possa negar, que querer é poder
E o nunca é uma invenção
Bem sei que este nosso cruzar, pode até nem passar
Dum capricho sem valor
Mas porque raio hei-de evitar, se esse teu ar
Me trouxe ao sangue calor

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda

E falas de ti, falas do tempo
Prolongas o momento. dum simples cumprimentar
Falas do dia, falas da noite
Nem sei que responda, perdido no teu olhar

Virgem Suta

Vem comigo praticar essa arte imemorial de quem espera











































Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

Iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

Vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

Vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


Al Berto

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Your Song

para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer
























Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

The English Patient

Porque há filmes a que me apetece sempre voltar

O amor não serve de nada




"Todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada . Ficaram só os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
Os domingos e as noites que passamos a fazer planos não foram suficientes e foram demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
Sei que nos amamos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora não irei negar isso. Não irei negar isso nunca, que te amei, nem mesmo quando estiver deitado, nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder ."


José Luís Peixoto

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Le Deserteur

Mas porque assim te invento e já te troco as horas





































Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido

os dedos que
me vogam nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...

Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...

Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei

para o vácuo
em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.

Maria Teresa Horta

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Shoot Me Down

se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos para guardar o teu corpo















































Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos;
se ao menos percebesses que eram nossos
todos os bancos de todos os jardins;
se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo
que ambos empunhamos na cidade clandestina
Quando as manhas cheiravam a óleo e a flores
e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo;
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos.

Joaquim Pessoa