quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tell Me Where You're Going

São os dedos que tocam as flores











































São os dedos
que tocam
as flores, ou são estas
que delicadamente pedem
às mãos
um gesto
de caricia,


Albano Martins

Tenderly

e podes ser-me íntimo na talha dos dedos em prece


























do anjo_______________________


que te fosse anunciação. corpo do corpo em cada ramo
de exclusiva intensidade. chama de bondade. axioma
e fragrância, urbi et orbi em texto de consequência
imediata. onde não somo mais que um fio de baba e outro
de ouro. literalmente animais perdidos à sombra do que
podia ser e não será depois de escrito o mea culpa sem ser.
perdoa-me não saber onde mora o pecado. anuncio-te
toda a pureza de um não para que em em antífrase me leias
sim e me vejas o anunciador.
faz-me flor. e flui-me em rosário e em fénix, anjo sem
abate, vuluptuosa viagem esta em que nos vigio. e se for
luxo possuir-te como anjo dispo o fascinare e podes ser-me
íntimo na talha dos dedos em prece, como se te lavrasse.

Isabel Mendes Ferreira

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

I see you now, and you are so very young but I've seen more battles lost than I have battles won

E é para lá que eu vou
























Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.



Clarice Lispector

terça-feira, 28 de setembro de 2010

But before the night is through, I wanna do bad things with you

Uma das minhas séries favoritas actuais (a outra é Californication), dos mesmo autores que fizeram, em minha opinião, a melhor série de sempre "Six Feet Under"


Nocturnamente te construo para que sejas palavra do meu corpo



Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Mia Couto 


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

cause tonight i'm gonna take that ride

Deixa-me reinar em ti... E se tiver que montar guarda, que seja em redor do teu sono


















Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.

José Jorge Letria

domingo, 26 de setembro de 2010

Let's Fall in Love

Tu vens todos os dias à noitinha







































Tu vens todos os dias à noitinha
e despes-te com tanta lentidão
com tanta lentidão que se adivinha
a forma do teu próprio coração

E quando vais é já noite fechada
não sei se vou ficar se vou sair
não posso ter a alma sossegada
sem saber se amanhã tornas a vir

David Mourão-Ferreira

Gosto de ti

Apresentação do novo álbum, o duplo Romance/Hardcore, dia 8 no Maxime


essa ilusão de voltar a ti olhando os papéis


Faltas-me. Se aqui estivesses isto não seriam
palavras. Um trinco por dentro, essa ilusão
de voltar a ti olhando os papéis, desconheço
o que de mim resta quando as horas quase trazem
o silêncio e a boca se abre, faz a passagem
do teu corpo a um corpo que aproveita
a substituição que não sabe. Mudaremos o tempo
para nenhuma exigência, faltas-me quando estás
a caminho, já oiço os teus passos subindo
no fundo da escada. Amanhece. Nos sonhos
que não sou capaz de lembrar vens tocar-me
nos ombros e dizer ainda não são horas, ainda
não é alba. As palavras faltam-me, vou
calar-me nas duas voltas da chave, este papel
apagado, sujo da ausência dos teus gestos.




Helder Moura Pereira



sábado, 25 de setembro de 2010

Sobre o teu corpo caio


















Sobre o teu corpo caio
daquele modo que o verão tem de espalhar os
            cabelos
na água esparsa dos dias
e faz das peónias uma chuva de oiro
ou a mais incestuosa das carícias.

Eugénio de Andrade

I Love to See Your Smile

Merge e Homer Simpson numa canção do Randy Newman


Over the rainbow

e ainda é tão tarde para que morramos os dois


































queria morrer contigo

não queria morrer de ti

prendi o amor nos meus braços
mas uma chuva de areia negra
cospe o meu sangue onde o coração

queria morrer contigo
contra o corpo limite do dia
arder praias onde o tempo acabava
começar Deus onde era o fim
não queria morrer de ti

a noite toda tem a espessura da perda
a boca beija o batimento da terra
o medo abraça-me

e ainda é tão tarde para que morramos os dois


Pedro Sena-Lino

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Duke

Em minha opinião um dos melhores (se não mesmo o melhor) músicos de sempre

Quem és tu, promessa imaginária que me ensina a decifrar as intenções do vento, a música da chuva nas janelas


























Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

Fernando Pinto do Amaral

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Almost Blue

e se alguma vez me vires nos teus sonhos sacode-me a terra ao coração



































é a luz que nos sorve
as sombras como só os
anjos são claros, mas eles
nunca o saberão, meu
amor, escureço agora e se
não vieres quem me
vestirá de morta

também para que me
sepultes como semente
e nunca como uma flor
porque sei que tudo
me diz bem vinda ao
mundo inteiro enquanto
parto

terás de perdoar a
tristeza do meu corpo, ele
não entende o que estou
a fazer

e se alguma vez me
vires nos teus sonhos
sacode-me a terra ao coração

se eu ao relento for uma
mulher a ser inventada, quero
aparecer num amor urgente, não
me esqueças agora que faltei, pensa
em mim como alguém que vive no
futuro e espera, toda a morte é
um milagre

e continuarei dentro de ti

chegarás de quando em
quando, sei-o, depositado
sobre mim como um hábito ou
algo de comer

já to disse, em nenhum
túmulo caberá a
minha alma, vazarei
pelos tamanhos remediada
com a solidez das coisas
que te tocarem

mas faz-me sempre assim,
empoleirada nos telhados
a enganar os girassóis

espelhos incandescentes
sabem que a minha face
se move, está em fuga enquanto
espera, quando vieres, se
vieres, estarei e não
estarei aqui

não posso fazer melhor, ainda
que o tempo dispa dia após
dia, sei que nunca surgirá
vulnerável e nu

abre sobre mim o
sismo da passarada, eu
passiva como a pedra onde
o vento afia e inscreve,
se eu te escrever um poema de amor
tu apaixonas-te por mim,
pergunto

quantas vezes te inventei
o pé das
águas do lago e
imaginei que me empurravas
ladeira abaixo para
enfim
morrer de amor

e fiquei sozinha, lentamente
como só lentamente se deve
morrer de amor

meu amor inventado
ainda assim tanto demoras

valter hugo mãe

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Aranjuez

Precisava falar-te ao ouvido.























Precisava falar-te ao ouvido.
De manter sobre a rodilha do silêncio
a escrita.
Precisava dos teus joelhos.
Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra.
E da tua casa
E do chão.


Daniel Faria

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Bleu

e de novo entre nós aquele choro de quem não teve tempo de preparar a despedida com as palavras certas





























guarda-me
adormecida para sempre no teu peito

ou deixa-me voar uma vez mais sobre
esta terra de ninguém onde morro
por qualquer coisa que me fale de ti

há noites assim em que o silêncio
se transforma ao de leve numa lâmina
que minuciosamente rasga o linho
onde ficou esquecido o corpo que habitámos
em provisórias madrugadas felizes

depois é só abrir os braços e acreditar
que ainda faltam muitas horas para a partida
e que à-toa pelos corredores ainda escorre
uma razão primeira a trazer-me de volta

e eu adormecida para sempre
no teu peito

e eu acorrentada para sempre
no teu peito

e de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas
porque as palavras certas estavam todas
em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor

muito ao longe uma voz desgarrada
estabelece o fim do verão

e eu adormecida para sempre
no teu peito

e eu acorrentada para sempre
no teu peito



Alice Vieira

sábado, 18 de setembro de 2010

Mozart Jackson

Vi-os há uns anos em Saragoça e foi espectacular

Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas, em que meu corpo se veste de céu a tua espera
























Deixa-me amar-te em meus silêncios
Na calmaria do teu coração que me acolhe
E de onde se desprendem meus sonhos
Em voos etéreos de plena liberdade

Deixa-me amar-te em minha solidão
Ainda que meus labirintos te confundam
E que teus fios generosos de compreensão
Emaranhem-se no tapete dos meus enigmas

Deixa-me amar-te sem qualquer explicação
Na ternura das tuas mãos que me sorriem
Escrevendo desejos em versos despidos
Na minha alva tez que te cobre e descobre

Deixa-me amar-te em meus segredos
Para que desvendes o que também desconheço
A alma dos meus abismos, onde anoiteço
E meus olhos adormecem embalados pelo mistério

Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas
Em que meu corpo se veste de céu a tua espera
E minhas mãos em frenesi acendem estrelas
Para alumiar-te, ainda que ausente



Fernanda Guimarães

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Karaoke

um dia, quando a ternura for a única regra da manhã
























um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o príncipio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.

José Luis Peixoto

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Somos

Demora-te hoje ao menos um momento
























Escrever-te, escrever-te. Talvez te conte do muito que não te contei e tu não me digas que tolice. Mas por sobre tudo o que poderia lembrar, há uma imagem obsessiva de ti e é a que sempre se me levanta ao incerto da evocação. Na realidade nunca te esqueço no dia a dia que te esquece. Mas ficas um pouco ao lado, à espera de que eu volte de novo a olhar-te. É uma imagem fluida e intensa, essa que se me ergue sempre, e eu penso que possivelmente é a de quando te vi pela primeira vez. Mesmo que não fosse a primeira e que estivesse então distraído do meu amor que passava em ti.

Em tanto lugar eu poderia lembrar-te. Mas volto sempre ao começo da irradiação de ti. Lembro-me é de quando na nossa primeira noite eu te disse que te amava e tu disseste também te amo. Hei-de lembrar-me decerto ainda de quantas outras palavras me disseste. Mas agora quero ouvir apenas essa tua palavra ardente em que toda a vida se me consumiu. E do sim gentil no pátio da universidade e em que tudo começou. Também te amo. Sim. E é estranho como uma vida inteira se me resuma a uma palavra. Possivelmente por ser a única a dizer tudo o que valeu a pena saber. E se resuma também à tua imagem, no instantâneo do teu passar. E agora que tudo findou, penso que a perfeição do teu destino no meu seria ouvir-te ainda uma vez, de passagem, também te amo. Uma vez ainda. Ainda. Assim eu te escrevo para te demorares um pouco. Talvez voltes a dizer-mo. E eu a ti. Voltarei a escrever-te? Para voltares a existir no que escrevo de ti. Demora-te hoje ao menos ainda um momento.
A chuva embate com fúria contra as janelas, às rajadas do vento. Estou mais só, sem a passagem de mim para lá da vidraça. Se tu viesses. Ainda que trouxesses a tua pequena ruga de irritação. E se te sentasses aqui comigo à braseira a ouvir a tempestade. E eu te tomasse uma tua mão, abandonada e fria. E houvesse calor bastante em fitar o teu olhar. E soubesses como era bom eu olhar-te. E inventássemos a harmonia de estarmos assim um com o outro até sempre, a ouvir a chuva e o vento. E ficarmos assim em silêncio por já termos dito tudo.
Onde menos te encontro é onde tu exististe. Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja, para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre. Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo. Porque tu foste de um mundo incorruptível onde o tempo não passa e é aí que tu moras no eterno de ti. Mas nem sempre consigo ver-te na emoção que me abala ao lembrar a tua imagem. Como nem sempre me emociona ouvir certas músicas ou olhar um quadro ou reler um poema. Ou olhar uma estrela, uma flor. Há em nós o dom perverso de só raramente ver o outro lado das coisas onde mora o seu mistério. Lembro-me assim de às vezes procurar na tua face a outra face que lá não estava e era a mais bela de ti.

O amor é tão monótono… Porque ele é o cimo sensível de uma imensidade de coisas que se esqueceram. Como falar desse mínimo que é o vértice de todo um mundo que o sustenta? Falar de nada, que é o todo nele? Podia dizer o teu nome infinitamente na multiplicação do que nele me ressoa. E é assim o que mais me apetece, dizê-lo, dizê-lo. E ouvir nele o maravilhoso que me abala todo o ser. Poderia escrever o teu nome ao longo do que escrevo e teria talvez dito tudo. Mas eu queria desse tudo dizer também o que aí se oculta. Dizer o meu enlevo e a razão de ele me existir. As tuas mãos nas minhas. O incrível miraculoso de eu dizer o teu rosto. O ardor de um meu dedo na tua pele. Na tua boca. O terrível dos meus dedos nos teus cabelos. O prazer horrível até à morte da minha entrada no teu corpo.
As sombras crescem a toda a roda, a noite vem aí. Vejo em baixo o jardim arrasado. Quando cheguei eu disse-me vou arranjá-lo de novo. Criar nos canteiros lilases e rosas. Armar uma grade para as trepadeiras. Criar árvores novas. Recompor a vida por sobre as ruínas. Mas nada ainda fiz. E eu digo-te boa tarde. Boa noite. Ver-te-ei amanhã?
Hoje a obsessão foi mais forte. Escrever-te. E um dia perguntei-te se tinhas guardado estas cartas. Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo.

Rasguei-as, naturalmente, disseste, e porque havia de guardá-las?


Vergílio Ferreira

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração

Um dos melhores poetas da história da música

Todas as minhas fontes vêm de ti

















Todas as minhas fontes vêm de ti
As nascentes
E amo-te com a constância do moribundo que respira
Já sem saber de que lado o visita a morte

Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois dos temporais
Entre a luz e os estilhaços das ruas bombardeadas
Desconheço o colar onde unes tudo

Procuro entender como é que moldas
Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão
Sei que és tu que me levantas
Que remendas o meu corpo cada dia

Em ti encontro a pulsação
Que rebenta - uma artéria como nunca
Tinha jorrado. Cratera onde durmo
Recluso, árvore à chuva
Em dificuldade extrema
De respiração

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço os braços para fora
Como um pássaro entre um bando
De disparos

Tu moves as agulhas, tu unes de novo
As minhas asas à curva do céu.


Daniel Faria

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Cavalgada das valquirias

Ah! uma coisa resta




















Da minha vida, o que eu lembro
É uma
Sucessão de janelas fechadas
Nalgum país de sonho…
Apago-me, suponho,
Como as luzes de uma festa
Ah! uma coisa resta,
Misterioso reflexo no escuro:
Teus lábios úmidos como frutos mordidos!


Mário Quintana

domingo, 12 de setembro de 2010

e apenas queria trazer de volta cada minuto que passou sem mim

Letra de Chico Buarque para a voz de Sérgio Godinho


Um dia... no qual me invento e te invento

























De súbito, entre a sombria
roda dos dias iguais,
às vezes sucede um dia
que se distingue dos mais.
É um dia raro, feito
à medida do teu peito,
onde o meu busca repouso.
Um dia claro, luminoso
e sobre todos perfeito.
Um dia contra o cinzento
correr dos dias iguais,
no qual me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.

Torquato da Luz

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Hallelujah

E esta canção, apesar das dezenas de versões, não tem interpretação como a deste senhor. E pela terceira vez tenho encontro marcado com ele logo à noite

Se um dia regressares, a terra estremecerá na memória da tua ausência


















Se um dia regressares, a terra estremecerá na memória da tua ausência. E a água formará um vasto oceano do outro lado do teu olhar.
Regressarás, talvez, quando o ar se tornar rubro em redor do meu sono - e o lume das horas, a pouco e pouco, saciar a boca que chama pelo teu nome.
Encontrar-nos-emos nas imagens deste jardim de afectos e ódios. Porque os jardins são labirínticas arquitecturas mentais, onde podemos resguardar os corpos de qualquer voragem do tempo.
Por isso, enquanto não regressas, construo jardins de areia e cinza, jardins de água e fogo, jardins de répteis e cassiopeias - mas todos abandono à invasão do tempo e da melancolia.
Mas se algum dia regressares, passeia-te pelo meu corpo. Descobrirás o segredo deste jardim interior - cuja obscuridade e penumbras guardaram intacto o nocturno coração.


Al Berto

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Secret Garden

Somos a carne de um fruto atordoado



















Somos a carne de um fruto atordoado. Somos o dia aparatoso nas escadas, depois navios ancorados carregados de bruma. Bebemos o sangue dos poentes como animais incrédulos de morrer.

Quando tens frio, risco-me como fósforo na tua pele ondulada. E dá-se o acidente nas gavetas.

As tuas pernas afogam-se em poços de água, eu tenho os braços engessados numa parede violenta - porém beijamo-nos na boca lenta da madrugada.

O meu nome acordou povoado pelo teu nome.



Vasco Gato

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Balada para un loco

amei-te como um sobrevivente doutro mundo doutros rios

























amei-te como um sobrevivente doutro mundo doutros rios
inundada de algas e plumas restos de asas na boca turgida e urgente
eras um grito da montanha debaixo da minha pele
um tigre aceso com olhos de carvão com garras de diamante e
a mesma força do nilo numa barca à deriva.
amei-te cheia de fome e sede molhada de frutos e ervas
e os teus rins aconteciam relâmpagos vermelhos e maciços.

o tempo era uma almofada apertando a alma
os gestos eram precisos claros e lá fora a cidade era um ponto
luminoso na ponta dos teus dedos cortantes densos turvos como
as horas de fechar a porta. os olhos voaram fora de nós e aí
nos deixámos adormecer.
fiz-te uma cama de espuma e na minha boca dobraste o cabo do medo.
quando partiste levaste o verão e eu fiquei sentada bordando no ar
um castelo de beijos e um filho de luar.

Isabel Mendes Ferreira

Sorrir, ao Sol, a tudo

Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície das tuas palavras
























Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou da ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o Verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.

Ana Marques Gastão

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Lembrando Zeca

Julio Pereira, Moz Carrapa e Minela Medeiros para uma canção do Zeca



Entro no teu quarto, como se entrasse no mar




























Entro no teu quarto, como se

entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. «Não te levantes, digo,
e deixa que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada.» Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.



Nuno Júdice

domingo, 5 de setembro de 2010

Can Our Love

Recordo-te e és a mesma ternura quase impossivel de suportar



A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)
Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços

Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos



Alexandre O´Neill

sábado, 4 de setembro de 2010

Fall in love



Há muito tempo já que não escrevo um poema

De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor



Miguel Torga

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Tenderly




Vamos abrir a noite
com música de Jazz
Vamos abrir a noite
Percorrê-la depois
num barco de borracha
Enforcar a memória
Celebrar o segredo
Descobrir de repente
Uma ilha que nasce dentro
do teu vestido
Chamar-lhe madrugada
Adormecer contigo

David Mourão Ferreira

Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer























Hoje, depois de escrever dez horas seguidas e sentindo-me cansado demais para continuar, levantei-me da mesa e tirei um livro da estante do corredor. Calhou ser Dickens, numa edição barata da Wordsworth. Tempos Difíceis. Abri-o onde resolveu abrir-se e apareceram quatro linhas mágicas: um filho visita a mãe, velha e muito doente. Pergunta
- Sente dores, mãezinha?
e ela responde
- Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer
e fiquei parvo com isto. Entre parênteses adoro ficar parvo com o que os outros escrevem: só costumo ficar parvo comigo, a interrogar-me de onde é que é aquilo saiu, porque não foi de mim com certeza, de maneira que penso que a mão de um anjo substituiu a minha. Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer é uma pérola única. Igual à vida: quantas vezes senti isto, sinto isto, sem ser capaz de o exprimir. As dores que me pertencem são fáceis, as que não estou certo de me pertencerem custam tanto. Viro-as para um lado e para o outro, estudo-as contra a luz, experimento-lhes o cheiro, a consistência, a cor e a dúvida perpétua
- Pertence-me?
a perplexidade, a hesitação, enquanto a dor dói e me faz sofrer para burro. Estamos muito bem na sala e aí anda ela pelos cantos, fazendo de conta que não existe e no entanto a arranhar, a arranhar, ou antes a lacerar-nos todos, a gente para a dor
- És tu?
e não responde, finge que se vai embora e fica, que não nos liga e insiste, que não quer saber de nós e não desanima. Até no meio do prazer, até no meio da alegria permanece, alarga-se, entra mais fundo, com um arzinho distraído, não nos deixa em paz. Para quê falar nisto, o que interessam as minhas dores, de resto? É Agosto e se fosse pequeno estava a caminho de Nelas com a família, não, Nelas em Setembro, em Agosto a praia, o raio de uma praia sem sol, nevoeiro e frio, a vendedora de bolos a passar com o cesto, as ondas cinzentas. Uma casa pequenina, alugada, a gente ao monte lá dentro. Eu lia, comprava o jornal desportivo, compunha versos que deviam ser frescos. E, toda a noite, o cordeiro do mar a balir. A minha mãe em fato de banho, o meu pai aos fins-de-semana, a cheirar a cachimbo, comigo na cama, de tábua nos joelhos, a aperfeiçoar redondilhas. Que diabo de texto é este em que comecei em Dickens e já vou nas redondilhas? A culpa é da esferográfica que vagabundeia sozinha. Nos livros sou disciplinado, nestas prositas divago. A dor, que não estou certo de me pertencer, abranda e depois volta, digo-lhe
- Olá, dor
e não lhe dou confiança. Não se deve dar confiança nem a nós, há que nos pôr em ordem. Põe-te na ordem, António, tu que durante a vida inteira detestaste obedecer. Aliás não te podes queixar, passaste o tempo a fazer o que querias. Agora, sei lá porquê, veio-me à ideia o meu irmão Pedro, o silêncio dele. Gosto de silêncio, de escutar palavras não ditas. Também gosto de pessoas que falam porque me permitem ir embora continuando ali. Elas falam, digo que sim com a cabeça e não estou. Estou onde? Na varanda da Beira a olhar a serra, por exemplo. Ou em parte nenhuma, num esconso interior, sentado no chão, de joelhos na boca, escutando o que não há. Desde que me lembro escuto o que não há, deixo que as coisas se inventem cá dentro, a minha cabeça é uma praia que a água invade e esquece. Neste momento, por exemplo, invadiram-me os travestis do meu bairro, com o seu único par de sandálias, heróicos no passeio, um movimento para diante quando se aproxima um carro, um movimento para trás quando o carro se afasta. Conquistaram duramente o quarteirão às mulheres pagas, após brigas de alto lá com o charuto entre os rapazes que protegem os dois negócios, um ganha-pão
(agrada-me o termo ganha-pão)
trabalhoso porque implica vigilância constante e bofetada fácil, para além dos quilos suficientes para se darem ao respeito. Lá voltam os Tempos Difíceis
(dar-se ao respeito também me agrada)
- Sente dores, mãezinha?
e no caso de se interessarem por mim o que responderia? Talvez, lá no fundo, mas disfarço, garanto. É que existem coisas que não sararam na alma, não hão-de sarar nunca: as árvores de um cemitério de província a tremerem, algumas mortes, a minha violência tantas vezes injusta, patetices, indelicadezas, faltas de atenção com quem o não merecia. Espero ter melhorado, acho que melhorei mas continuo sem me perdoar o egoísmo necessário à escrita que me obrigou a cortar tantos pescoços que se interpunham entre eu e ela. No entanto, aprecio o António: comove-me a sua feroz guerra civil interior, a vulnerabilidade escondida, a compaixão que não mostra. O imenso orgulho que tem nos seus poucos amigos, a admiração por eles, o respeito. Dois homens, quando são homens, estão condenados a entender-se, não é? Agosto e o bairro deserto. Sobro eu, o senhor Cardoso da mercearia, o senhor Miguel do café, pouco mais. Ah, o senhor Varela a quem todos os dias pergunto pela diabetes. Até os pombos se foram, os restaurantes fechados. O senhor Cardoso viaja para a Beira Alta, perto de Seia, perto de mim. Fala da terra numa exaltação que me toca, mostra fotografias de casas e ruas, enquanto a esposa aprova. E o ar, senhor doutor? E a beleza daquilo? Alimento-me dos iogurtes que lhe compro, recebem o meu correio
- Uma encomendazinha do estrangeiro de que a dona Irene corta as guitas com a faca: livros
- Muito livro há-de ter você
acha o senhor Cardoso, cujo filho, ao que parece, lê que se desunha:
- Lê tudo, o meu filho
e a dor que anda por aí e não estou certo de me pertencer amaina. Se a Joana
- Sente dores, paizinho?
afiançava-lhe logo que não, quais dores, que tolice. Dúzias de lugares para automóveis na rua, um casal na esplanada do senhor Miguel, um compincha drogado que a cocaína electriza. Mostra-me as tatuagens das cadeias
(Vale de Judeus, Pinheiro da Cruz)
onde passa temporadas a banhos por assaltar pessoas com um canivete. Garante
- Se fosse preciso matava por si
e desaparece num salto, pobre esqueleto desfeito. Dor nenhuma claro, Joana. Só que de tempos a tempos, mas isso não te digo, o coração num pingo. Não tarda nada passa, julgo eu. Julgo não, tenho a certeza: mais um minuto ou dois e há-de passar.

António Lobo Antunes

Neste infinito fim que nos alcançou guardo uma lágrima vinda do fundo



Neste infinito fim que nos alcançou
Guardo uma lágrima vinda do fundo
Guardo um sorriso virado para o mundo
Guardo um sonho que nunca chegou

Na minha casa de paredes caídas
Penduro espelhos cor de prata
Guardo reflexos do canto que mata
Guardo uma arca de rimas perdidas

Na praia deserta dos dias que passam
Falo ao mar de coisas que vi
Falo ao mar do que conheci...

No mundo onde tudo parece estar certo
Guardo os defeitos que me atam ao chão
Guardo muralhas feitas de cartão
Guardo um olhar que parecia tão perto

Para o país do esquecer o nunca nascido
Levo a espada e a armadura de ferro
Levo o escudo e o cavalo negro
Levo-te a ti... levo-te a ti... levo-te a ti
para sempre comigo...

Na praia deserta dos dias que passam
Falo ao mar de coisas que vi
Falo ao mar do que nunca perdi.

um dia a noite há-de dizer-te como o amor escrevia no meu corpo






















um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo

lá fora o meu desejo assassina o mundo
a noite não existe porque a deixaste
no movimento de pedra dos meus braços

daqui onde estou quem te era
não se vê nada do amor

Pedro Sena-Lino

Pelos teus olhos

















Pelos teus olhos
vejo, em ti
me vejo, te vejo
em mim


Albano Martins

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Tempo de Ciganos

Sarkoz(H)itler
























A ciganice de Sarkozy
Ricardo Araujo Pereira

A crise económica que o mundo vive é commplexa e não é fácil apontar com exactidão o momento em que terá principiado, mas o governo francês já identificou os seus responsáveis: são os ciganos. A descoberta não terá apanhado ninguém de surpresa. A bem dizer, todos sabíamos do papel que os ciganos desempenharam  no descalabro financeiro norte-americano e, subsequentemente, mundial. O conselho de administração do banco de investimento Lehman Brothers era integralmente constituído por ciganos.
Uma das razões da falência do banco foi, aliás, o facto de os seus administradores só pegarem ao serviço à tarde. De manhã estavam na feira, a vender T-shirts de contrafacção. Bernard Madoff, cuja tez morena é bem reveladora de ascendência  cigana, confessou ter planeado o seu esquema fraudulento ao som dos Gipsy  Kings. E subprime é um termo do dialecto cigano que significa «ai, LeIo, vamos conceder empréstimos imobiliários de alto risco até provocar a insolvência de três ou quatro grandes instituições financeiras».
Ninguém sabe bem a razão pela qual os gregos elegeram um governo de ciganos, mas o facto é que eles estão lá, a fazer crescer a dívida externa e a arrastar a Europa para a falência.
E Sócrates, não sendo cigano, é, no entender de muitos, um ciganão. Creio que é óbvio para toda a gente que a crise económica é mundial precisamente porque os ciganos, sendo nómadas, conseguiram levá-la a todo o lado.
É mais do que natural e justo que o governo francês tenha perdido a paciência com os prejuízos que esta etnia tradicionalmente ligada à alta finança tem provocado e, por isso, como costuma suceder em França com os estrangeiros que não têm categoria suficiente para representar a selecção francesa de futebol, os ciganos foram recambiados para o seu país de origem. País esse que, neste caso, é a Roménia - que faz parte da União Europeia. É azar: os ciganos, que são um povo sem fronteiras, têm algumas dificuldades para circular na Europa sem fronteiras. Ainda assim, um povo tão habituado a ler a sina deveria ter adivinhado que isto da livre circulação de pessoas iria ser prejudicial para quem é nómada. Era mais que óbvio.
Não ignoro que a medida de Sarkozy tem sido criticada, mas apenas pelos radicais de esquerda do costume. Como o Papa. A verdade é que os ciganos só trazem problemas. Recordo que o cigano mais famoso de sempre era estrela de cinema. Chamava-se Charlie Chaplin. Se bem me lembro, era raro o filme em que ele não arranjava problemas com a polícia. Aquilo está-lhes no sangue.

Lobo Antunes - 68 anos hoje



























"Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato "


Diziam-me isto, em criança, e eu adorava. Voltou-me hoje à ideia, passado tanto tempo. Tanto tempo, uma ova: era menino, limitei-me a piscar os olhos e fiquei como agora. Entende-se a maldade? Eu não entendo. Piscar os olhos é um instantinho, que raio de merda aconteceu? Mascararam-me com rugas, cabelos brancos, vontade de ir mais cedo para casa. Brincadeira de mau gosto, a idade. Oiço

- Você era lindo

e torno-me uma pedra por dentro. Miséria deste tempo verbal, era, que horror. E lindo, ainda por cima, eu que nunca me achei lindo, sempre me dei mal com a minha cara, o meu corpo. Notava o olhar das raparigas e achava esquisito. Até bilhetinhos me mandavam, até conversa comigo metiam. E eu corado, aflitíssimo. Uma ocasião, com catorze ou quinze anos, fui ao Bairro Alto, a uma casa de prostitutas. A bicha começava logo na escada. Lá fui subindo aquilo degrau a degrau, atrás, nunca me esquece, de um magala fardado. Uma criatura à entrada a cobrar o dinheiro, uma sala com espelhos, cadeiras mulheres sentadas, de roupão. Não consigo reconstituir bem o que se passou depois, a minha cabeça, chegada a este ponto, dá um salto e estou num quarto com uma cama, um cabide pendurado de um gancho na parede, um bidé e uma garrafa, para além de uma mulher, há pouco sentada, a despir o roupão e a mandar-me despir. Desci as calças, atrapalhando dedos nos botões, a mulher fixou-me mais ou menos ao centro do corpo, declarou

- Deus deve gostar de ti, miúdo

e no momento a seguir estava a puxar as calças para cima e a fugir escada abaixo desarrumando a bicha. Continuei virgem durante séculos, é uma forma de expressão mas serve e, além disso, razoavelmente exacta. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato.

O que sucedeu à minha lindeza? Murchei devagarinho ou de repente? Sou feio, nesta altura? Um pavor se calhar, todo torto. Recordo-me do meu pai fazer trinta e três anos (idosíssimo)

porque eu gaguejava e repetia trin trin trin para alegria dos crescidos. Recordo-me também de, nessa época, estar doente com a tuberculose, que a minha mãe apelidava, julgo que por vergonha, de gânglios:

- O António teve gânglios

consoante me recordo da falta de apetite, do frio, de estar deitado, de conversas incompreensíveis à minha roda. O meu avô dava-me miniaturas de bichos em vidro que eu atirava, com fúria, contra a janela. Não me recordo dos remédios, não me recordo do médico, recordo vagamente as minhas tias a tomarem conta de mim. Do sol na janela. De soldados a marcharem na Estrada de Benfica. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato.

Doenças: uma meningite também cá canta, aos nove ou onze meses de idade. Contam os aedos da tribo que comecei com febre e entrei logo em coma. O que eu fiz para morrer, tantos esforços, logo ao princípio, merecem consideração, aplauso. Não recebi nem uma nem outro. Se calhar julgaram que não fiz de propósito, os tontos. Temos alguns suicídios na família, nós: o pai da minha avó, primos do meu avô, assuntos secretos, que me relataram já tarde e com vergonha. Há alturas, e digo isto em segredo, em que fico com os dedos negros, procurando uma corda. O António de língua de fora, desorbitado, a baloiçar. Depois a esperança volta, recomponho-me. Espio a mão: dedos cor de rosa, normais, já não tenho bichos a devorarem-se dentro de mim. Que era lindo. Agora sou um senhor. Num dos restaurantezecos onde como o dono trata-me por jovem:

- Boa tarde, jovem

- Então o que vai ser hoje, jovem?

- Meia-dose ou uma dose, jovem? e eu aceito o jovem que, de tempos a tempos, se metamorfoseia em amigo

- Então o que vai ser hoje, amigo?

embora, ultimamente, penda para o jovem e me atire cotoveladas cúmplices.

Sinceramente o que foi hoje não me lembro. Espera, lembro: empadão de carne, meia-dose. E saí na mecha para fazer as compras da casa e escrever isto. A seguir começo o trabalho no livro de que tenho apenas o magma da primeira versão e não faço ideia, sequer, se é ou não um livro. Muitas dúvidas acerca disso e receio bem que acabe no lixo. Mais de metade do meu trabalho acabou no lixo. E, na manhã seguinte, lá estava eu no caixote a procurá-lo, tentando reconstituir dúzias e dúzias de páginas amarrotadas e rasgadas. Com o Fado Alexandrino, então, foi um sarilho, aquilo era grosso como o diabo. Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato. E tem sido um dia infernal, entrevista cedo, encontros de trabalho à tarde e eu, à socapa, a espreitar a mesa das palavras, ansioso por voltar a elas. Por que razão o tempo roubado à escrita me faz sentir culpado? É esquisito mas faz, não devia sentir-me culpado: acabo por estar nisto tantas horas, deixo a pele, deixo a alma nas frases, crucifico-me todo. Anoitece, acendo a luz, continuo. Tão cedo ainda para entenderem o que digo, perguntas estúpidas, interpretações parvas. Isto, sobretudo, nos jornais. Dos universitários só tenho a dizer bem, há um entendimento do texto muito mais profundo. Agora os artigozinhos de jornal, em regra, são uma miséria: opiniosos, superficiais, ignorantes, tão desonestos às vezes. E dão estrelinhas, os camelos, de mistura com uma ignorância de pasmar. Então o que vai ser hoje, jovem? Peço o jornal desportivo para ler enquanto como, um olho no prato o outro no futebol. Saudades de Garrincha: escrevia tão bem! Quando eu era miúdo e comprava os bonecos da bola o avançado centro do Elvas chamava-se Patalino. E um defesa do Olhanense Grazina. O guarda-redes do Sporting de Braga Cesário. O do Estoril Sebastião. Espero que estejam todos de boa e feliz saúde pela alegria que me deram.

- Você era lindo

e na época de Patalino, Grazina, Cesário e Sebastião, reconheço que era lindo de facto. Se eles voltarem a jogar prometo ser lindo outra vez.




António Lobo Antunes