segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala

























amanhã meu amor,

amanhã faço poemas com os teus dedos donde nascem flores,
amanhã escrevo-te cartas com os lábios a tremer de frio,
amanhã adormeço desperta no canto mais canto que houver da tua voz,

amanhã meu amor,
verei todas as folhas amarelas que nascem do chão e regressam aos ramos dos teus braços,
amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala,
amanhã fecho os olhos e finjo que estou acordada
para que me toques as pálpebras com a respiração ofegante de quem cega,

amanhã meu amor,
abro as janelas do peito onde nascem estrelas sem céu,
abro a cama e procuro-te debaixo dela,
dou-te a mão para me encontrares no mapa da pele dolorida,
para que me encontres talvez no mesmo sítio de sempre onde nunca foste,

amanhã meu amor,
dedico-te o vento que roça as estátuas já esverdeadas da tua cidade,
faço-te promessas de palavras que não existem,
desafio-te para um duelo de um só combatente,
deixo-te sozinho comigo encostada aos teus ombros de lava,

amanhã meu amor,
vou cantar canções na rádio da frequência 0.00,
vou atirar-te areia com os pés no meio de lugar nenhum,
devolvo-te as minhas ideias que nunca ouviste porque não sei dizê-las com boca nem mão,

amanhã meu amor,
vou gostar de ti como se fosses uma manga doce,
vou ter medo das paredes intactas do teu ser,
vou gritar às raízes das árvores por não as ser   ,
vou girar à volta do mundo sem sequer o saber,

amanhã meu amor,
vou desenhar a lápis de cera como as crianças,
dar-te um desenho de que me vou esquecer,
amadurecer à tua espera, à espera de me ver em ti,

amanhã meu amor,
vou fazer malabarismo com o tempo,
desprender-te da liberdade, da minha liberdade,
acongechar-te à noite sem saberes,

só porque amanhã meu amor,
amanhã,
vou continuar a gostar de ti.



Raquel Lacerda

Avec mes yeux tout délavés qui me donnent un air de rêver moi qui ne rêve plus souvent

domingo, 30 de janeiro de 2011

nos dias em que chegas a casa triste sou só corpo com meias tontas até aos joelhos









































nos dias em que chegas a casa triste
o meu corpo é triste para que nada te fira
nos dias em que chegas a casa triste
sou só corpo com meias tontas até aos joelhos
um corpo nu  no medo claro da noite
os seios no redondo azul da tua esfera
e a sombra deles na parede do quarto.
nos dias em que chegas a casa triste
sou uma salomé no desassossego do licor,
o teu lado esquerdo com um sexo de flores,
a ternura somente insuportável
de te saber triste sem te poder tocar.

Ana Salomé

Rocco e os seus irmãos

Vontade de rever este filme


sábado, 29 de janeiro de 2011

Afogados de amor e de nudez somos a maré alta de quem ama.








































Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar ardente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
Mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente
Ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato Faria

à espera dum outro sol e que os teus olhos os uses como quem usa um farol

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Sente que venho da noite, que é com angústia que chamo pelo teu nome, sonho os teus sonhos, espero as tuas mãos.











































Toca-me o sangue. Peço-te que me toques
o sangue. Escuta este rumor
dentro do meu peito, esta palavra enlaçada
a uma pedra que arde dentro da terra.

Toca-me o sangue. Ordeno que me toques
o sangue. Este rio que corre nos meus olhos,
a música silenciosa que o mar vem entregar
quando os homens regressam do crepúsculo.

Vê como estou vivo. Vê como sabem a terra
as minhas palavras. Vê como tenho ensanguentadas
as minhas palavras perdidas, esses barcos
que a tempestade teme e as aves anunciam.

Amo-te. Toca-me o sangue. Sente que venho
da noite, que é com angústia
que chamo pelo teu nome, sonho os teus sonhos,
espero as tuas mãos.

Toca-me o sangue. Toca os fios de dor
que me rasgam a boca. Toca o fogo dos meus cabelos.
Toca-me o sangue, a escuridão
em chamas do meu peito.



Sou o que espera na noite. Sou o que chora
na sombra. Sou o que espera a tua passagem
silenciosa, os teus quadris ardentes
navegando na noite impassível.

Espero-te. Espero-te. Um perfume ergue-se
das tuas mãos, um punhal. Toca-me o sangue.
Sou o que espera na solidão inquieta
e toma a luz pela luz dos teus cabelos.

Espero um rio, é uma praia que espero, o azul
penetrante da tua tristeza secreta, esse bosque
rugindo um nome e precipitando a fuga
dos que temem e estão intranquilos.

Toca-me o sangue. Toca o arco de fogo
que cai das minhas mãos, as sílabas perdidas na terra
por que uma criança cresce para o sono
e toca a limpidez de uma lágrima.

A vida vem com a brisa. Um astro
aproxima-se do teu rosto. Uma canção desprende-se
da árvore de espuma que a sombra engendra.
Toca-me o sangue. O febril sangue do meu peito.



Amo-te, mulher desconhecida. Amo-te.
Amo o jorro de luz da tua boca,
as tuas cálidas palavras, a orla secreta
dos teus lábios onde o mar vem beber.

Amo o lume inesperado dos teus olhos, o teu corpo
nervoso, as tuas mãos perdidas no vazio.
Amo as caladas cintilações da tua boca,
a pequena mancha de tule que dança nos teus olhos.

Como a luminosidade descobre uma sandália na areia,
o sinal recente de um beijo no contorno de um rosto,
como um coração de pedra arde dentro da pedra
e uma nuvem transfigura para sempre o horizonte, amo-te.

Toca-me o sangue porque te amo. Toca-me o sangue
porque trago comigo uma palavra sagrada. Porque estou
inocente. Porque te amo. E uma ponta de luz
entrega a claridade invisível dos teus dedos.

Um rumor de água ou de lume vem das tuas mãos.
Pulsa nas veias da noite o vento do teu nome.
Um pássaro queima a tristeza, inextinguível.
Um grito, um grito rebenta finalmente no meu e no teu peito.



Amadeu Batista

5:55

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto, esse eterno levantar-se depois de cada queda





















Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.


Vinicius de Moraes

As minhas coisas favoritas II

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Eu morro da vida que me dás todos os dias










































Deitadas és uma ilha. E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitas és uma ilha. Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias.


David Mourão-Ferreira

Les yeux, la voix, tes mains sur moi, les mots d'amour ça reste là, on n'oublie pas, je ne t'oublie pas




On oublie les adresses
Comme les gens qui nous blessent
On oublie sans cesse
Les jours d'anniversaires et nos clefs, les repères, on les perd
On oubliera les chaînes de nos vies qui se traînent
On oublie quand même
Mais il est une chose à laquelle nous resterons fidèle

Les yeux, la voix, les mains, les mots d'amour ça reste là
Le jour et l'heure, la peau, l'odeur, l'amour ça reste là
C'est fort encore
C'est mort d'accord
Mais ça ne s'oublie pas
Ne s'oublie pas, ça
On n'oublie pas

J'oublierai ce mois d'août où j'ai dû faire la route sans toi
Sans doute
J'oublierai ma défaite et le rêve qui s'arrête
J'oublierai peut-être
Mais j'y pense encore quelque fois et ça ne s'explique pas
S'explique pas

Tes yeux, ta voix, tes mains sur moi, toujours ça reste là
Le jour et l'heure, ta peau, l'odeur, l'amour ça reste là
C'est fort encore
C'est mort d'accord
Mais ça ne s'oublie pas
Ne s'oublie pas, ça
Je n'oublie pas

Les yeux, la voix, tes mains sur moi, les mots d'amour
Ca reste là
On n'oublie pas
Je ne t'oublie pas

Le jour et l'heure, la peau, l'odeur, l'amour c'est là
On n'oublie pas
Je ne t'oublierai jamais

Ela fecha com meus sonhos como ninguém

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

e as mãos essas abandona-as

















escuta amor

talvez num dia
em que de mim já nada mais exista
te lembres de dois braços
que te abraçaram convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue
te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as...


Mário-Henrique Leiria

Pimentinha

17/03/1945 - 19/01/1982

29 anos sem Elis

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Se me contares uma história que acabe bem, e acho que não custa contares uma história que acabe bem, ajuda





























Desenha-me uma árvore, desenha-me o sol, um sol a sorrir, com sobrancelhas e nariz, desenha-me nuvens com cerejas penduradas. Desenha-me uma vaca. Ou um gato. Ou um elefante, já agora. Uma casa com um quintal. Isso: desenha-me uma casa com um quintal e nós dois à janela. Conta-me uma história. Não te vás embora ainda, conta-me uma história que acabe bem, com pessoas felizes para sempre. Mente-me. Faz o favor de me mentires desde que sejam mentiras que eu goste. Dá-me uma colher de compota, ervilhas com ovos escalfados, um beijinho na testa. Não custa muito, um beijinho na testa, de modo que a marca do baton fique na pele. Depois diz-me

-Podes ir

e eu vou, não me arrasto por aqui a maçar-te, prometo, a ler o jornal, a ocupar espaço, a encher tudo de fumo, a deixar cinza no chão. Aprendi a perceber quando as coisas acabam e, depois de onze anos de casados, é assim tanto pedir-te que desenhes uma árvore? Não te incomodes com o papel, qualquer papel serve, nem vale a pena procurares uma caneta, usa o lápis dos olhos, aquele com que, ao princípio, me sujavas o colarinho. Até nem me rala que ponhas a árvore, ou o sol, ou as nuvens no colarinho, se me perguntarem explico

- Foi a minha ex-mulher

e as pessoas compreendem. Não faças essa cara, compreendem, por que carga de água não haviam de compreender? Não comentam

- Olha aquele com uma vaca na camisa aprovam. Não acreditas em mim?

O problema é que nunca acreditaste em mim, a mesma conversa desde o princípio

-És maluco

e se calhar sou maluco, sei lá, que diferença faz se acabou? E uma vaca na camisa, o que tem? Quem diz vaca diz elefante, e vaca ou elefante o que tem? O mais natural é que nem reparem, conforme não repararam na falta de aliança no meu dedo. Pode ser que uma colega

- A tua aliança?

eu

-Perdi-a

ela

- Perdes tudo

e a voltar ao microscópio, desinteressada. Em todo o caso

- Perdes tudo

injusto,  às vezes esqueço-me do guarda-chuva, como toda a gente, mas

- Perdes tudo

um exagero. Um exagero e uma mentira. Perdi-te a ti e chega. Se me contares uma história que acabe bem, e acho que não custa contares uma história que acabe bem, ajuda. Não te levantes, por favor, espera um bocadinho que eu já saio, tenho a mala à porta, é só pegar nela, meter-me no carro e não tomas a pôr-me a vista em cima. Nem olho para as janelas, garanto, à procura de uma cara que não vai aparecer nos caixilhos, de uma mãozinha que não vai acenar, com esse verniz de unhas que me excita. Desculpa confessar isto, que aliás neste momento não tem importância, mas excita-me, não leves a mal. Há outras partes tuas que me excitam, por exemplo aqui, não te zangues que não é uma carícia, é uma explicação, por exemplo aqui também e não vale a pena sacudires-me sei perfeitamente que não sou desejado. Recordas-te de quando eu te lambia a orelha e tu

- Faz-me cócegas

Mas,  sem tirares a orelha, a apertares-me a perna com mais força ainda? Consentes que te lamba uma última vez, uma vez pequenina, lambo e tiro logo. Nem me sentes? Assim ao de leve, olha.

a concha do ouvido, o lóbulo, o pescoço neste sítio, onde o cabelo tem caracolinhos pequeninos, lá estás tu a fechar os olhos e a respirar mais depressa. Lá estão os teus ombros a tremerem. Tão bom quando os teus ombros tremem, quando te lamentas

- Estou toda arrepiada

e giras a cabeça, isso, para que te acaricie a nuca, desça um bocadinho ao longo do pescoço, te passeie no ombro devagar, estás a ver, toque ao de leve com a ponta do indicador, na ponta do peito que começa a ficar duro, que cresce, qual a razão da ponta do peito crescer, dos joelhos

-Não pares

começarem a afastar-se, da minha palma subir pelo interior da perna até este sítio, onde tudo mais tenro, mais dócil, mais suave, volta-te para este lado, desenha-me a tal árvore no peito, com a boca, vai descendo, se quiseres, que eu não levo a mal, não há motivo para levar-te a mal, que bom pegar no teu cabelo e guiar-te a cabeça, eu puxo o fecho éc1air, não te incomodes, eu desaperto o cinto, o raio da fivela há-de obedecer, chama-me maluco, chama-me doido, chama-me fofinho, não pares, por amor de Deus não pares, mais depressa, assim, não mordas que aleija, quantas vezes é preciso dizer que aleija, raios te partam, vamos lá a fazer isso com jeitinho, como deve ser, vamos lá a fazer isso como uma maluca, uma doida, uma fofinha, ai tão lindo, estamos quase no fim, que árvore tão bem desenhada, que nuvem com cerejas penduradas, que gato, que elefante, que história bonita com pessoas felizes para sempre que me estás a contar, aguenta um segundo que tenho de ir à cozinha beber água e já volto, vou num pé e venho no outro, nem dás por isso, depois pões-me outra vez a aliança no dedo, a aliança pode esperar, o que interessa agora, que se lixe a aliança, mesmo sem aliança sou teu marido, tens aqui um sinal esquisito, umas rugas, de expressão uma ova, umas rugas, não te zangues se te confessar que envelheces sem graça, pede uma piza pelo telefone que o fogão não é o teu forte, há onze anos que engulo o que me dás sem um protesto, comemos uma piza, depois sentamo-nos no sofá, depois tu vês televisão e eu aborreço-me, depois tiras a minha roupa da mala e guardas tudo, como deve ser, nas gavetas, depois, antes de te deitares, não laves os dentes com a minha escova que detesto o teu hálito, e sobretudo pára imediatamente de me desenhares vacas na camisa com o lápis dos olhos, vão pensar que me passei dos carretas e fica sabendo que a palavra maluco, a partir de agora, desapareceu desta casa.


António Lobo Antunes

Porque me olhas assim

sábado, 15 de janeiro de 2011

da minha janela vê-se uma espécie única de medo





















da minha janela vê-se uma espécie muito rara de angústia
tem o corpo que não ousei que me fosse
usa o amor como origem da sede
e sossega-me contra o peito da alvorada

da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida

da minha janela não se vê mais nada
ouve-se o silêncio contra mim
e chove a morte contra os vidros
por dentro como soa o fim

Pedro Sena-Lino

Tu m'as gardé de pièges en pièges je t'ai perdue de temps en temps

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

E eu, que aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade nos faz adultos para sempre, sei que te perderei em qualquer caso





























Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo

este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.


Maria do Rosário Pedreira

Play it again Bogart

Humphrey Bogart

Nova Iorque, 25 de dezembro de 1899 — Hollywood, 14 de janeiro de 1957


sábado, 8 de janeiro de 2011

morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma

















já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma



Paulo Leminski

Come fly with me

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

o amor é uma noite a que se chega só



















A noite abre meus olhos

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só.


José Tolentino Mendonça

eu bem que lhe disse que amar é tolice

Três génios, a voz e violão de João Gilberto, o Sax do Sr Stanley Gayetsky (Stan Getz) e o Piano do Sr António Carlos Jobim

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Sente-se triste por ter sido só isso, um sonho




























Mora no penúltimo andar de um prédio alto e à noite o vento que bate com força na janela do quarto perturba-lhe um sonho enquanto ela dorme. Passam as duas da manhã e, no seu sonho, é como se ele estivesse ali. Mas não está, está longe, e, no entanto, está com ela sim, à distância de um pensamento, a pensar nela, a vigiar o seu sono. Ao telefone, ela disse-lhe eu amo-te mas o nosso amor é um sonho impossível, por todas as razões que nós sabemos. Ele respondeu-lhe não digas isso, não é verdade, acredita em mim, eu cumpro o que te prometo, vamos ficar juntos, sim.

Ela adormeceu agarrada ao telemóvel e a última frase que lhe ouviu – ou julga que lhe ouviu – foi um pensamento que ele lhe disse, que desejava adormecer com ela, não só nessa noite, mas todas as noites da vida deles. Ela pensou eu também e respondeu-lhe que gostava do seu pensamento.

O vento uivou furioso, assustador, e ela sentiu-se sozinha na sua cama. Escondeu-se do frio, encolhida de lado, debaixo dos cobertores. Desperta num sobressalto, a madrugada vai a meio, e fica ali deitada, de olhos espantados, observando as sombras sinistras que dançam na parede do quarto. Fica assim, deitada, a pensar nele, na falta que lhe faz e como odeia estar sozinha, mas já não sabe se ele lhe disse mesmo que a queria para sempre ou se foi só um sonho bom.

Depois, vencida pelo sono, adormece novamente, e, quando volta a acordar já é de manhã, as sombras dissiparam-se, o vento parou e o dia chegou com um sol prometedor que irrompe pelo quarto como que a querer dizer-lhe que está tudo bem. Ela abre os olhos devagar, estremunhada, apetece-lhe continuar deitada, mas pensa que tem de ser e senta-se na cama para contrariar a vontade. Olha para o lado com um aperto no peito, ele não está lá como estava no sonho. Sente-se triste por ter sido só isso, um sonho, e interroga-se de novo se lhe terá ouvido realmente aquele último pensamento antes de ter adormecido.

Baixa os olhos e percebe que ainda tem o telemóvel na mão. Repara que recebeu uma mensagem silenciosa dele durante a madrugada. Carrega na tecla e lê: O meu desejo é adormecer contigo todas as noites. Sorri, com a frase dele na cabeça, feliz por não ter sido só um sonho e por saber que ele estava mesmo com ela enquanto dormia. Depois, num impulso, escreve-lhe uma mensagem de resposta. Diz-lhe: Também te quero para sempre e não te enganarei com sonhos impossíveis, meu amor, não há sonhos impossíveis.

Tiago Rebelo

Eu por fora estou cicatrizando e por dentro sangrando