sábado, 27 de novembro de 2010

Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.



















Já nos vimos várias vezes. Fomos apresentados num dos serões que costumava passar na casa do Francisco e da Joana quando ainda não se tinham divorciado, quando a Joana ainda não tinha partido um serviço inteiro de pratos fundos e terrinas na parede da sala, quando o Francisco ainda não passeava de mão dada com a Marta aos domingos na beira do rio. Não acredito que ela se lembre do momento em que fomos apresentados. Quando tento lembrar-me, sinto que misturo memórias com aquilo que imagino que possa ter acontecido. Foi um momento em que tentámos não estar. Esperámos por ouvir o nome um do outro, fez-se silêncio, e aproximámos  os rostos rapidamente, a simular o cumprimento que todos esperavam que trocássemos. Regressou o som das conversas, da televisão ligada e da música de um disco que era sempre escolhido pelo Francisco.  Depois, quando nos encontrávamos, sempre na casa do Francisco e da Joana, cumprimentávamo-nos à  chegada e à saída. No dia em que a Joana começou a partir pratos na parede da sala, deixámos de nos ver.

Até hoje de manhã. Estava atrasado para o meu encontro com o João. Saí de casa a correr. O pequeno-almoço foi uma maçã que agarrei e que guardei no bolso do casaco. Penteava-me com os dedos quando o elevador parou no segundo andar.  Desviei o olhar e disse bom dia. Conheço mal os meus vizinhos. Nunca fui a uma reunião de condomínio. Quando pedem dinheiro para pequenas obras ou para pagar algum serviço extra à senhora que lava as escadas, pago sem fazer perguntas.  Hoje de manhã, pelo reflexo do espelho, reconheci-a logo. Com o mesmo penteado que usava nos serões do Francisco  e da Joana, era ela que ia comigo a descer no elevador. A minha primeira reacção foi um embaraço tímido.
Não sabia se devia dizer-lhe alguma coisa. Não sabia se não seria ridículo dizer-lhe alguma coisa porque  não sabia se ela me reconhecia. Mas não tive tempo para prolongar estas dúvidas porque, no instante seguinte, de repente, o elevador parou. Encravou. Levantei o rosto para olhar para os números. Estávamos entre o primeiro andar e o rés-do-chão. Ao baixar o rosto, foi inevitável que parasse no rosto dela. Trocámos duas expressões sem  significado e ela tirou o telemóvel da mala. Descreveu a situação a uma amiga chamada Ana e perguntou-lhe se ela tinha o  número da senhora Fernanda, a vizinha da frente. Enquanto repetia os números, eu decorava-os. Desligou e ligou para o número da senhora Fernanda. Não estava em casa. Atendeu o marido, o senhor Alfredo.  Foi depois disso que começámos a ouvir barulhos nas escadas: vozes que não se conseguem compreender, passos. Já são quase duas horas da tarde. Ainda não dissemos nada um ao outro. As vezes, os nossos olhares cruzam-se. Não me  consigo lembrar do nome dela. Não sei se ela se lembra de mim. Estou a ganhar coragem para lhe contar que tenho uma maçã guardada no bolso do casaco.


José Luis Peixoto