quarta-feira, 30 de março de 2011

E devagar, sem te voltares, pelos espelhos entras na noite
























Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo
em que se perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.

É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.

Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.

Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.

E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.


Eugénio de Andrade

Avé Maria

quinta-feira, 24 de março de 2011

Aprendiz de ausências


















Morre
como quem desagua sem mar
e, num derradeiro relance,
olha o mundo
como se ainda o pudesse amar.

Morrer
depois de me despedir
das palavras, uma a uma.

E no final,
descontada a lágrima,
restar uma única certeza:

não há morte
que baste
para se deixar de viver.


Mia Couto

Me fui

Acabamos, mais cedo ou mais tarde, por acreditar no silêncio







































Trazemos no fundo do casaco
algumas canções usadas
— e achamos, por vezes, que
é para nós que as estrelas brilham,
entre prédios demolidos e amores também.


Acabamos, mais cedo ou mais tarde,
por acreditar no silêncio.
A felicidade, para outros, continua válida.
Mas disso, obviamente, nada podemos saber.



Manuel de Freitas

Solo quiero caminar

sexta-feira, 18 de março de 2011

Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se






















Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morri em ti e em ti os meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo.
Construí a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo ainda o teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

Joaquim Pessoa

Cómo decir que me parte en mil as esquinitas de mis huesos?

quinta-feira, 17 de março de 2011

Tudo o que nos abandona precisa de muito tempo para desaparecer










































Porque razão não voltaste a telefonar e me deixas assim, suspensa, à tua espera? Nem para o emprego (conheces o número do emprego) nem para casa, sabes que estou sozinha' não recebo ninguém, uma amiga de tempos a tempos que não impede que ligues, quando muito saio uma hora ou duas ao sábado para visitar a minha mãe, nunca vou ao cinema, nunca janto fora, como qualquer coisa por aqui, leio uma revista
(nem leio uma revista, folheio, vejo as fotografias e é tudo, ou antes nem vejo as fotografias, fico a pensar em ti)
poiso a revista, abro a televisão, fecho a televisão, vou à janela espreitar a rua, penso que é o teu carro a estacionar lá em baixo e nunca é o teu carro a estacionar lá em baixo, nunca és tu a fechar a porta com o comando eléctrico e as luzes do automóvel a acenderem-se e
a apagarem-se, nunca são os teus dois toques de campainha, nunca é o teu aceno no capacho nem o embrulhinho de biscoitos de que não gosto e me forço a comer e a fazer dieta no dia seguinte dado que os biscoitos engordam, nunca é a tua mão no meu ombro
- A minha menina
o teu perfume, a tua maneira de acomodar o rabo no sofá, a tua aliança que apesar de normal me parece sempre enorme e me dói, não tenho coragem de te confessar que me dói mas dói, conforme me doem as tuas mentiras
- Há anos que não há nada entre nós que me obrigam a perguntar, calada, se entre nós há alguma coisa, vinhas uma ou duas ocasiões por mês, não ficavas nunca e, no entanto, bastava-me, não peço muito à vida, não peço seja o que for à vida, acostumei-me, não tenho motivos para lamentar-me, o que ganho chega, graças a Deus a saúde não me tem faltado apesar do problema da coluna, tomo as injecções no posto médico e as coisas vão andando, o creme que me receitaram na farmácia ajuda, o apartamento claro que não é grande mas para mim sozinha chega e sobra, não existe uma prestação por pagar, arranjo sempre um dinheirito ao fim do mês, volta e meia compro um vestido, uns sapatos, os vizinhos não fazem barulho, há agora um bebé no primeiro direito mas sossegado, tenho saudades tuas, Ernesto, mesmo com a aliança tenho saudades tuas, no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado e apesar disso consegui fazer as compras todas, uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita, achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti
- És a minha menina
preocupo-me com o teu coração sempre que levas a mão ao peito, tiras um comprimido de uma caixinha, me pedes água, me ofereces um sorriso pobre
- Ferrugem na máquina
e a seguir melhoras, suponho que o comprimido limpa a ferrugem toda, aflijo-me com a tua palidez, com o dedo a medir a pulsação julgando que não noto, como podia não notar, tudo o que te aflige assusta-me, não te aborreço
- Que ferrugem na máquina?
para que não te sintas velho ou inútil, suponho que tens sessenta anos e portanto uma vida inteira à frente, o emprego deve cansar-te, as maçadas, quando menos se espera descais-te num suspiro
- A minha filha não há maneira de ter juízo
e ignoro o que, na tua ideia, não ter juízo seja, fico calada, é evidente, trago-te aquele licor fraquinho que tu gostas, faço-te festas no pescoço, a medo, com receio de maçar-te, não reclamo seja o que for, não mendigo seja o que for, só desejava que de tempos a tempos te lembrasses de mim, há sete meses que nem uma palavra, inquieta-me que a ferrugem haja aumentado e estejas na sala de espera de uma consulta, emagrecido, pálido, digo
-Ernesto
em voz alta como se dizer
-Ernesto
te melhorasse, comove-me que andes a perder cabelo, que o nó da tua gravata um bocadinho torto, que uma tremura no queixo, pode ser que mais de sessenta anos, sessenta e cinco, setenta e apesar de setenta a vida inteira à tua frente à mesma, o que eu não dava para te ter aqui um momento, um minutinho, um instante, na tua última visita trazias dentes novos que te tornavam mais vigoroso apesar de mal pegados à gengiva e a incomodarem-te que se percebia por estares constantemente a empurrá-los com a língua, oxalá encontres um pó que segure a placa, a minha mãe usa um pó que segura lindamente a placa, repara-se que placa mas firme como uma lapa no queixo, mastiga de tudo, não te agradava ficar um momento comigo no sofá, não te anima o licorzinho, a quantidade de vezes que digo em voz alta, aqui em casa
-Ernesto
na esperança de um sorriso teu, mesmo pobre, mesmo aflito, na esperança de
- A minha menina
e eu, sem coragem de responder
-O meu rapaz
 digo
-O meu rapaz
para dentro, não me sai, não consigo, faço tanta cerimónia, não me atrevo a procurar-te, a tentar saber de ti, a incomodar, a protestar
- Que aliança tão grande, Ernesto
eu que não casei nunca, uns namoricos, umas cartas cerimoniosas, um domingo, durante uma excursão ao norte, um
(desculpa)
beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti, Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera, sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas
- A minha menina
enquanto verificas se trazes
a caixinha dos comprimidos no bolso, pode parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes não levantes na minha direcção o teu sorriso pobre e a tua desculpa
-A ferrugem
mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o princípio do mundo.

Às vezes o amor

quarta-feira, 9 de março de 2011

e foste tu quem me criou a mim quando quiseste


















Como posso eu amar-te, se nem sei
como à porta te chamam os vizinhos,
nem visitei a rua onde nasceste,
nem a tua memória confessei.
Que vaga rima me permite agora
desenhar-te de rosto e corpo inteiro
se só na tua pele é verdadeiro
o lume que na língua se demora...
Não deixes que te enganem os recados
na infernal gazeta publicados
que te dão já por escultura minha;
nocturno frankenstein, em vão soprei
trombas de criação, e foste tu
quem me criou a mim quando quiseste

António Franco Alexandre

Bobby Brown

quinta-feira, 3 de março de 2011

na rua onde os nossos olhares se encontram é noite




































ingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.


José Luis Peixoto

Cada alegria que inventas mata a verdade que tentas porque é tentar a fingir