quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

enquanto te atarefas absurda no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida de mim.




















Na árvore em frente
eu terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos
amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
e me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
do fundo do teu ser de sono e plumas
para me receber; nossa fruição
será serena e tarda, repousarei em ti
como o homem sobre o seu túmulo, pois nada
haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo.
Depois saudaremos a claridade. Tu dirás
bom dia ao teto que nos abriga
e ao espelho que recolhe a tua rápida nudez.
Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia
para matar a nossa sede e mel
para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos
como dois irmãos que se amam além do sangue
e fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino.
Só então nos separaremos. Tu me perguntarás
e eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas
que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher
até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema
dessa desesperada minha busca; que em ti
fez-se a unidade. De repente, ficarei triste
e solitário como um homem, vagamente atento
aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda
no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida
de mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito
como pesada porta. Terei ciúme
da luz que te configura e de ti mesma
que te deixas viver, quando deveras
seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio
em demanda do abismo. Vem-me a angústia
do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
que te circunda – o espaço
que separa os nossos tempos. Tua forma
é outra: bela demais, talvez, para poder
ser totalmente minha. Tua respiração
obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
o ar se faz aroma. Fora de mim
és pura imagem; em mim
és como um pássaro que eu subjugo, como um pão
que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
em que bebo, como um resto de nuvem
sobre que me repouso. Mas nada
consegue arrancar-te à tua obstinação
em ser, fora de mim – e eu sofro, amada
de não me seres mais. Mas tudo é nada.
Olho de súbito tua face, onde há gravada
toda a história da vida, teu corpo
rompendo em flores, teu ventre
fértil. Move-te
uma infinita paciência. Na concha do teu sexo
estou eu, meus poemas, minhas dores
minhas ressurreições. Teus seios
são cântaros de leite com que matas
a fome universal. És mulher
como folha, como flor e como fruto
e eu sou apenas só. Escravizado em ti
despeço-me de mim, sigo caminhando à tua grande
pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho
lavar de ti o que restou do nosso amor
enquanto busco em minha mente algo que te dizer
de estupefaciente. Mas tudo é nada.
São teus gestos que falam, a contração
dos lábios de maneira a esticar melhor a pele
para passar o creme, a boca
levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem
no eterno espelho. E então, desesperado
parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala
alpinista no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo
na Patagônia. Passo três meses
numa jangada em pleno oceano para
provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me
de plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo
naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match
dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me
o "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel.
Mas eis que comes um pêssego. Teu lábio
inferior dobra-se sob a polpa, o suco
escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio
E tu te ris. Teu riso
desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga
quantidades insuspeitadas de estrôncio-90
acumulam-se nas camadas superiores do banheiro
só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa
radioatividade. Tu te ris, amiga
e me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo
de morrer. Interiormente
procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama…"
Digo-me, para me convencer, enquanto sinto
teus seios despontarem em minhas mãos
e se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida
imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias
fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados
de Pavlov. Depois, sorrindo
silencias. Odeio o teu silêncio
que não me pertence, que não é
de ninguém: teu silêncio
povoado de memórias. Esbofeteio-te
e vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
e coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para
combinar bem as cores; em seguida
fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta
transfusão. Eu convalescente
começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me
traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas
só com o casaco do pijama e pousas
minha mão na tua perna. E então eu canto:
tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
corrói minha carne como um ácido! Teu signo
é o da destruição! Nada resta
depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
de todo o meu inútil, a causa
de minha intolerável permanência! Tu és
uma contrafação da aurora! Amor, amada
abençoada sejas: tu e a tua
impassibilidade. Abençoada sejas
tu que crias a vertigem na calma, a calma
no seio da paixão. Bendita sejas
tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas
os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face
dentro da grande treva da existência. Sim, mágica
é a face da que não quer senão o abismo
do ser amado. Exista ela para desmentir
a falsa mulher, a que se veste de inúteis panos
e inúteis danos. Possa ela, cada dia
renovar o tempo, transformar
uma hora num minuto. Seja ela
a que nega toda a vaidade, a que constrói
todo o silêncio. Caminhe ela
lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha
para o desconhecido – esse eterno par
com que começa e finda o mundo – ela que agora
longe de mim, perto de mim, vivendo
da constante presença da minha saudade
é mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga
a que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos
a minha amiga nunca superável
a minha inseparável inimiga.

Vinicius de Moraes

L'amour est cerise

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.










































(...)Lá no sul,onde nasci:o meu corpo dentro do corpo da minha mãe,sob a sua pele,encostado aos seus ossos;lá no sul,existem casas caiadas,existem campos,existem planícies que estão agora tão longe de mim e que,ao mesmo tempo,estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro dessa memória,na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois de eu nascer,a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da casa adormeceram.Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal.Tinha os pés descalços sobre a terra.Eram os últimos dias do verão.No centro do céu da noite,a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada.Os dedos da minha mãe eram grossos no momento em que,com ambas as mãos me levantou no ar,sobre a sua cabeça,na direcção da lua e disse:
Ò lua,ò luar,/eu fi-lo nascer/ajuda-mo tu a criar.
Eu era pequeno e branco.Nos olhos da minha mãe via-se os seus braços erguidos,via-se o meu corpo dentro do círculo branco da lua.
Nesta noite,antes e depois de nos separarmos,era essa mesma lua que existia no céu.Como a minha mãe,essa lua existia num lugar onde não a tentámos ver,mas sei agora que existia e saber isso é saber que o mundo é tão vasto.Agora,neste momento,não sei onde estás.Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.Agora,longe daqui,existe a terra do sul onde nasci.Estou parado e sei que vou recomeçar a caminhar.
Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu.Olho para as minhas botas e vejo uma altura de nevoeiro que começa a levantar-se do chão e a envolver-me lentamente os joelhos.Os pontos de luz que brilham no chão são mais vagos.E uma voz terrível e negra começa a atravessar-me.Não distingo as palavras que diz através de mim.Lentamente,levanto o olhar ao céu.Sobre mim,existe um lugar infinito e maior do que eu.Sobre mim,o céu desta manhã é o espaço infinito onde pode existir tudo aquilo que existe nomeu peito.Como a sombra pálida do meu coração,distingo no céu desta
manhã,no céu luminoso e baço do meu peito,a forma branca da lua.O dia nasceu sobre a noite e a noite continuou sob a luz cinzenta desta manhã.A noite feita com formas de fumo e de nevoeiro.Quando ainda era mesmo de noite e estavas ao meu lado,disseste:não podemos ser felizes.Eu desejava-te tanto.Eu via os teus olhos através do ar da noite,sabia que estavas a meu lado e sabia que nos íamos separar.Vi-te partir.Os teus passos a afastarem-te de mim.Eu estava parado perante o horror,o medo.Tu afastavas-te de mim.
Entravas em casa,como se saísses para sempre de mim.Saías para sempre de mim.O momento em que fechaste a porta:eu soterrado por todo o negro, todo o veneno negro.Uma faca infinita.Eu a perceber que ficarás para sempre fechada dentro dessa casa.Nunca,nunca mais poderás sair.A noite,a rodear-me,era o lugar negro onde existiam certezas terríveis:a morte,a morte de tudo.Entre as paredes das casas,a tua casa.Os vidros das tuas janelas fechadas refectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim,olhava para o lugar onde sabia que estavas,a casa que te continha e,no entanto,aquela casa era um lugar escuro,um poço,era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós.Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver.Eu desejava-te ainda.Agora,desejo-te ainda.Sei que existem cemitérios.Sei que a casa onde estás,o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas,a não te lembrares de mim,é um lugar de destroços.
Vivemos rodeados de cemitérios.Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não voltaremos a ver.No céu,a lua é a mesma que existia quando,deixando-te,caminhei pelas ruas desertas.Os meus passos na noite.Os meus passos e,lentamente,o dia a nascer sobre as coisas da noite.Lentamente,a noite fixa no seu lugar,nos objectos,nas casas,no céu,e o dia a envolvê-la como uma capa de luz cinzenta.Esta manhã lunar.Esta manhã que é uma manhã e que é ainda a noite.A lua neste céu branco.Pouso as pálpebras sobre os olhos.Vapor,nevoeiro.Os teus olhos eram um caminho.Os teus cabelos eram talvez um horizonte.Não sei como acreditámos que as palavras eram simples.
Sonhávamos e enganámo-nos.Sorrindo,mergulhávamos os lábios no veneno
quando pensámos que bebíamos o antídoto.(...)

José Luis Peixoto

take me home... cause I'm still in love you



take me home
you silly boy
put your arms around me
take me home
you silly boy
all the world's not round without you

I'm so sorry that I broke your heart
please don't leave my side
take me home
you silly boy
cause I'm still in love you

sábado, 25 de dezembro de 2010

Mas eu sei que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde para quase tudo


















































Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar esta cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.




Maria do Rosário Pedreira

E não está sempre?

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Busco inspiração nos vestígios de ti que ainda perfumam o meu corpo































Busco inspiração nos vestígios de ti que ainda perfumam o meu corpo. Teus acordes, teimosamente dançam boleros em meu coração, avivando notas e compassos. O céu, esparramado de estrelas, focaliza-me sob a lente dessa saudade invasora que me veste.
A lua, parceira e cúmplice de nossas entregas, compactua com a minha solidão...os sons da noite silenciam, reverenciando minhas lembranças. Uma lágrima me acompanha...depois outra e mais outra. Pranto silente de quem vagueia insone entre duas taças de vinho, sorvendo tuas últimas palavras...meus lábios passeiam pela tua taça, talvez buscando degustar os verbos que não conjugaste, as frases que deixaste adormecidas num brinde a tua sensatez.
Será a minha saudade eterna? Dias amanhecem, mas a tua sombra, desconhece o passar do tempo, o bater ritmado das horas...estás em mim, nos meus rastros de solidão, nos meus olhares perdidos que ainda insistem em te ver e em lugares do meu corpo que eu não consigo identificar.
Fomos presas fáceis nas mãos que desenham o amor...tuas nuanças misturaram-se em uníssono às minhas, produzindo tons que faziam nossas almas sorrirem. Nossos corações se refestelaram num banquete que só os nossos olhos eram capazes de sentir...não nos importávamos com o amanhã ou com o mar de espinhos que cruzávamos, para brincarmos de felicidade. Descobri-me infinita na minha capacidade de amar em todos os átimos de segundos em que tuas mãos desnudavam meu coração.
Ainda agora é nítido o som dos teus abraços nos ocasos da minha pele...gostos que se misturam em meio às marcas dos beijos que te roubei. Minhas mãos, ainda trazem o mapa da tua pele, tatuado em cores de entrega...meus lábios, ainda têm vontade dos teus, sedentos, percorrendo trilhas, criando atalhos, trêmulos em descobertas. Teus desejos, navegavam em mergulhos abissais no meu mar, quando banhava-te em minhas águas tépidas, espiando meus arrepios e acordando meus prazeres. ..
Recordações de uma história que não foi vivida no mundo dos sentidos reais, mas também impossível de ser esquecida...imagens que continuam espalhadas nas noites de luar, em beijos guardados e nos pedaços de abraços que meu coração insiste em juntar. Meus olhos guardam capítulos a escrever, estrelas a contar...

Fernanda Guimarães

Frosty the snowman




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Pois para isso fomos feitos: para a esperança no milagre





















Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

O tigre e a neve

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Porque a vida de tempos a tempos é aborrecente mas há coisas que valem a pena




































Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Morais se tinha medo da morte.
O poeta respondeu com um sorriso:
- Não, minha filha. Tenho saudades da vida.
De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo. Estou certo que o meu pai anda chateadíssimo no cemitério, sem livros, sem música, sem oportunidades para ser desagradável. O meu avô, tão diferente do filho, já deve ter feito montes de amigos por lá, todos a comerem percebes à volta de uma mesa grande. E o meu tio Eloy joga às cartas com os outros, a sorrir de satisfação quando lhe saem naipes bons. Costumava inchar na cadeira, a olhar para eles, repetindo
- Muito bem, senhores oficiais
da mesma maneira que, se as coisas corriam mal, se lamentava
- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim
e vejo-o daqui, sem uma prega, elegantíssimo. A minha tia Madalena lê livros grossos, a minha tia Bia ensina piano e eu sinto medo de não haver papel, nem caneta, nem amigos, nem mulheres. Mas, voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá? Da minha filha Isabel ao levá-la a um museu para lhe encher de amor pela beleza os tenros neurónios:
- Estás a gostar?
- Acho um bocado aborrecente
e não tive coragem de dizer que também acho os museus um bocado aborrecentes. Não ligava muito aos quadros, ou antes não ligava um pito aos quadros mas, na época de eu criança, havia escarradores cromados, a cada dez telas, que me interessavam muitíssimo. O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e, não estou a brincar, envergonho-me disso. No transporte para o liceu sempre admirei os cavalheiros que tiravam um lenço muito bem dobrado da algibeira, o abriam numa lentidão preciosa, puxavam a alma dos pulmões, depositavam-na no lenço num gorgolejo de ralo, competente, profundo, examinavam a alma com satisfação, tornavam a dobrar o lenço e faziam o resto do trajecto com ela nas calças. Talvez seja por isso que nem lenço uso: quando me acho fungoso luto comigo mesmo para não limpar o nariz na manga: a maior parte das vezes consigo. Vou ter saudades daqueles que se assoam com dignidade e estrondo e dos outros, mais comuns, detentores de um poder de síntese que, desgraçadamente, me falta. Passa uma rapariga e eles, logo
- És muita boa
numa concisão admirável, a acotevelarem um sócio distraído
- Viste?
O sócio já só apanha a rapariga ao longe mas concorda por solidariedade
- Chega o verão e descascam-se logo
e o do poder de síntese remata
- Todas umas putas
que é um ponto final que não admite acrescentos, ei-las catalogadas em definitivo, de modo que se passa aos méritos da cerveja preta que, além de acabar com a sede, é óptima para tirar nódoas, seja na camisa, seja no estômago
- Até limpam as úlceras
limpam as úlceras e amortecem o presunto:
- Se as pessoas mamassem uma preta a meio da tarde ninguém adoecia.
Segue-se a inspecção da sola do sapato
- Olha-me para a porcaria deste buraco aqui
e um discurso acerca das fragilidades e misérias do cabedal. Terei saudades disto? Do senhor da mercearia ao pé de mim vou ter de certeza. Está sempre sozinho na loja, atrás do balcão, educadíssimo. Se lhe comprar um maço de cigarros e disser
- Obrigado
responde de imediato
- Obrigado somos nós
num tom papal, que me leva a imaginá-lo cercado de criaturas invisíveis para mim mas óbvias para ele, uma multidão de espectros sobre os quais reina com benevolência. Tem sobrancelhas grossíssimas que não vão inteiramente com os seus gestos fidalgos. Nunca vi ninguém entrar na mercearia a não ser eu. Mentira: uma ocasião estava lá uma velhota que comprou dois pêssegos, a contar o dinheiro como se estivesse a despedir-se para sempre de um filho único. Lembro-me que fitou as moedas, até elas se sumirem na gaveta, numa ternura que me rasgou ao meio o coração. Depois sumiu-se numa portinha ao lado, com uma pantufa no pé esquerdo e uma bota no direito. O degrau da portinha levou-lhe um quarto de hora a escalar. O senhor da mercearia, esquecido do
- Obrigado somos nós
abriu-me os horizontes
- É a dona Esperança que já foi muito rica.
Foi muito rica e agora um pêssego, uma sopinha talvez, os restos da riqueza no prego. Terei saudades disto, também? Para citar a Isabel a vida, de tempos a tempos, é aborrecente. Será que, há séculos, a dona Esperança muito boa? Será que o marido cuspia em condições? É pouco provável porque o marido, segundo o senhor da mercearia, doutor.
- Doutor de tribunais
especificou ele com admiração
- Doutor de tribunais
escutei eu já na rua. Penso que se o meu tio Eloy visse aquilo comentava
- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim.
Eu também não, tio, eu também não. E, já agora, quando Vinicius de Morais se referia a saudades da vida em que vida pensava?



António Lobo Antunes

Christmas Time

domingo, 12 de dezembro de 2010

Lisbon Story

e já não sei se sonhamos o mesmo sonho, ou se nos levantamos ao mesmo tempo para o amor, mas ainda te amo
























Antes de partir, talvez ainda não seja tarde para começares a regressar. Estou sozinho, ardo na memória das noites em que não te conhecia. E não sei se suportarei o peso do teu rosto ausente sobre o peito, tatuado; e talvez recorde a tua respiração enforcando-me, noite após noite, enquanto durmo. Tua mão escavou o desejo entorpecido nestas débeis veias, e já não sei se sonhamos o mesmo sonho, ou se nos levantamos ao mesmo tempo para o amor, mas ainda te amo.
Aliso tuas pálpebras durante as noites de vigia e sei que uma vida anterior à minha presença as feriu. No entanto, sinto que ainda és capaz de me olhar como se eu contemplasse o mar. De resto. Os dias acumulam-se uns sobre os outros, iguais, sob o negro esplendor do sol. E latejamos, além, onde nos perderemos para sempre.
As tuas mãos vestiram as minhas, e fizeram-nas voar de sedução em sedução. Mas, dentro das fotografias, erguem-se pirâmides de cintilantes ossos, pequenas nódoas de memórias, feixes de veias quebradas pelas chuvas… não, não é o solitário canto do noitibô que nos surpreende, nítido, persistente, mas sim o grito que há-de crescer do fundo de nós. E, com o tempo, as mãos, as tuas, cairão também no esquecimento… e delas apenas permanecerá uma sensação de ardor sobre a minha pele.
Mas se um dia voltares acorda-me, como inesperadamente me acordaste uma noite. Não me deixes dormir mais, desperta-me e tudo se iluminara num gesto, num sorriso teu. Talvez não seja tarde ainda para começarmos a regressar um ao outro. Basta beber o mel que sempre bebemos no sexo um do outro, e de novo sentir o turbilhão de alegria que nos despertava a meio da noite para o amor.
Os espelhos ainda nos devolvem a candura do que somos, mas também anunciam a cinza que sepultara os corpos, algures, num esquecimento e numa dor obscura de nós próprios. Temos de aprender a subjugar o destino à nossa vontade. Ainda é possível mergulhar nos espelhos e roubar-lhes os vestígios felizes de nossos rostos. Ainda é possível apagar as dolorosas manchas da memória e recuperarmos o rosto da alegria que nos pertenceu. É esse o nosso rosto, mesmo que seja morto.
Regressa. Regressa ao escorrer dos dedos enrolados no sexo, ao riso matinal dos corpos saciados, às nocturnas conversas das esplanadas, aos jogos de sedução, aos engates, ao murmúrio das vozes, à ofegante trepidação da manhã, regressa... regressa. Porque as palavras não te substituem e estão cheias de pústulas no coração das sílabas.
Regressa e oferece-te à preguiça triste de quem continua aqui, vivo, sorvendo a espiral da sua própria ausência. Regressa, peço-te, mesmo antes de partires. Regressa à voracidade do desejo, e à incendiada paixão dos nocturnos tigres.

Al Berto

sábado, 11 de dezembro de 2010

Born Under a Bad Sign

chegaste quando o fim sangrava dos meus braços




chegaste donde o medo tecia os meus cabelos
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia

era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos

chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita

chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora que a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguém
que eu próprio desconheço



Pedro Sena-Lino