terça-feira, 26 de outubro de 2010

Jersey Girl

Já está por aqui esta canção na versão Holly Cole, mas é a versão pelo seu criador a que mais gosto


Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem





Nunca falámos muito

(acho que nunca falámos nada)

e não sinto necessidade de começar agora. O que lhe poderia dizer? -existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras, dúvidas, esperanças, perguntas, a curiosidade, por exemplo, de saber o que sentiu quando eu estava em coma com a meningite, você me fez uma punção lombar e andou a procurar os micróbios no microscópio. O meu filho morre? Não morre? Foi isso que sentiu? A angústia? O medo? E depois, na altura em que os bacilos da tuberculose me vieram aos pulmões? Disso lembro-me bem, da minha impaciência, da minha zanga com o mundo, de me trazerem presentes e eu os jogar no chão. Nunca falámos muito

(acho que nunca falámos nada)

dou por mim agora a olhar a sua cara devastada, os olhos fechados, os dedos que não cessam de mover-se, o seu frio constante e fico calado a vê-lo. Você abre os olhos

(continua a surpreender-me que sejam azuis)

alcança-me para ali sentado, no quarto que foi o meu e de onde

agora você quase não sai, interroga-me

- Tens escrito?

não respondo

(o que lhe importa isso?)

o azul dissolve-se em mais uns minutos de sonolência, toma a abrir os olhos e então sim, conversamos um bocado. De Schubert. Dos Impromptus. Na janela a figueira.

Sonolência de novo. O azul regressa: Sá de Miranda em lugar de Schubert, um soneto que, aliás, você cita de maneira errada. Mas o verso a seguir está correcto:

incertos muito mais que ao vento as naves

e os dedos em paz. Terá adormecido? Não, porque me informa

- Tenho uma data de anos

e tem: a boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos?

- Tenho uma data de anos

e é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos.

Chega-lhe à ideia a Floresta Negra, o Professor Vogt:

- Queria que eu ficasse lá a trabalhar com ele

o Professor Vogt e a sua colecção de cérebros cortados às fatias:

- Há vinte e quatro anos que não faço clínica

e concordo que uma data de anos. A infância em Tânger, o meu avô. Murmura

- O meu pai

e ao articular

- O meu pai

espanto-me como em criança me espantava que o meu pai tratasse outra pessoa por pai. Pai era você. O meu avô era avô. E, dentro de mim, eu exigia as coisas assim simples, claras. Na janela a figueira.

Havia duas mas a outra, a mais antiga, morreu. Sobrou esta. Sobramos nós dois no que foi o meu quarto, com a fotografia enorme de Charlie Parker na parede. Então penso que você pode ter todos os defeitos do mundo mas era de certeza o único pai que pregou no quarto de um filho adolescente o retrato de Charlie Parker. A expressão de Charlie Parker lembra-me a frase de uma carta de Van Gogh ao irmão: sofremos por conta de uma porção de malandros e safados.

Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem. O que é que a puta desta figueira espera para dar folhas, flores? Schubert. Sá de Miiranda. Os dedos parados. Então levanto-me e saio do quarto. A minha mãe

- O que achaste do pai?

e ao descer as escadas para a rua dou-me conta de que afinal não existe nada debaixo dos tais anos de silêncio. Quero dizer, quase nada: existe um filho cheio de coisas que prefere não transformar em palavras enquanto, muito ao longe, um saxofone principia a tocar.


António Lobo Antunes

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Falsas recordações felizes





O passado de Gonçalo começou a desmoronar-se à mesa de um bar, no Bairro Alto, várias cervejas depois da meia-noite, quando ao riso sucedeu o cansaço. Tinham discutido o namoro de Penélope Cruz com Tom Cruise. A conferencia sobre racismo em Durban. As vantagens e os perigos do casamento. Então, em meio ao fumo amargo que enchia a sala, alguém lançou um novo tema – o Primeiro Beijo.
«Nunca me esquecerei», disse ele. «Foi em mil novecentos e setenta e oito, no dia em que fiz dezasseis anos. Tinha ido a um concerto do Chico Buarque com alguns colegas de liceu. O Chico começou a cantar o Eu te Amo, que aliás não se presta muito para uma declaração de amor, é antes uma canção de despedida. Lembram-se?...»
Cantarolou com voz rouca:
«Se nós, nas travessuras das noites eternas / já confundimos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo seguir. / Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunçada do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu…»
Calou-se um momento, o olhar absorto, enquanto enrolava nostálgico uma madeixa do cabelo. Já não lhe restava muito cabelo de forma que aquele tique era um pouco deprimente. Suspirou.
«E então ela encostou a cabeça no meu ombro e eu beijei-a.»
«É bonito», reconheceu um dos amigos, critico de música, um tipo que se gabava de saber quase tudo sobre tudo, ou, em alternativa, tudo sobre quase tudo – e realmente sabia. A erudição dele incomodava os outros. «Seria ainda mais bonito se fosse verdade. Isso não pode ter acontecido em mil novecentos e setenta e oito. O Chico Buarque só criou essa canção, em parceria com o Tom Jobim, dois anos mais tarde.»
Gonçalo olhou-o perturbado:
«Disparate! Tenho a certeza que o Chico cantou essa música na noite em que fiz dezasseis anos, portanto em mil novecentos e setenta e oito. Foi nessa noite que comecei a namorar com a Marisa. Infelizmente nunca mais soube dela. Vocês lembram-se da Marisa, não se lembram?»
Não, ninguém se lembrava da Marisa. A Gonçalo, todavia, bastava fechar os olhos para voltar a vê-la. Era uma rapariga alta e flexível, com grandes olhos negros, melancólicos, e um alheamento pelas coisas do mundo que a fazia parecer imaterial. Apetecia ao mesmo tempo protege-la e ultrajá-la. Confrontados com a descrição de Gonçalo todos lamentaram não ter conhecido Marisa. Na mesa ninguém se lembrava dela. Pior: nem sequer se lembravam dele por essa altura.
«Só te conheci em mil novecentos e noventa», precisou o crítico de música. «Num concerto da Cesária Évora.»
Aquilo era demais. Gonçalo levantou-se indignado:
«Nunca estive num concerto da Cesária. Nunca!»
Ninguém disse nada. Toda a gente sabia que o critico de música jamais se enganava nos factos. Menos ainda nas datas. Gonçalo tirou uma nota do bolso e colocou-a sobre a mesa.
«Eu já vou…»
Nenhum dos amigos procurou detê-lo. Gonçalo saiu aflito para a noite mansa. Qual era a sua recordação mais antiga? Esforçou-se um pouco. Recordava-se de ter assistido pela televisão à ocupação de Goa pelas tropas indianas. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo, ainda não andava na escola. Voltou ao bar e perguntou ao crítico de música:
«Olha lá, sabes dizer-me quando é que perdemos Goa?»
O outro nem pestanejou:
«A dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e um.»
Gonçalo respirou fundo. Nessa data ainda nem era nascido. Seria possível que todas as suas memórias fossem apócrifas? Voltou a sentar-se, tremulo, e pediu mais uma cerveja. Se não podia confiar nas próprias recordações não havia nada em que pudesse confiar. O crítico de música citou Buñuel:
«Uma vida sem memória não é uma vida.»
Depois percebeu que aquilo não tinha nada de animador e tentou emendar:
«O teu caso não me parece tão grave. Tens uma vida. É falsa, sim, mas afinal de contas é uma vida.»
«Mais valem falsas recordações felizes», acrescentou um outro, «do que lembranças autenticas e desgraçadas.»
Gonçalo estava inconsolável:
«Vocês acham que eu nunca beijei a Marisa?»
Ninguém respondeu. Talvez tivessem bebido demais. Talvez fosse demasiado tarde. Talvez achassem realmente que ele nunca beijara Marisa.


José Eduardo Agualusa

não me digas quem és nem ao que vens. Decido eu




















Não me diga a que vens
Deixa-me adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou.

É longe a tua casa?
Dou-te a minha:

leio nos teus olhos o cansaço do dia que te venceu; e, no teu rosto, as sombras contam-me o resto da viagem.

Anda,

vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo — é um
destino sem dor e sem memória. Tens

sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja — morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens.
Decido eu




Maria do Rosário Pedreira

Mujeres de Água

Do disco Mujeres De Água, um projecto de Javier Limón e que é dedicado às mulheres iranianas perseguidas por cantarem.

e diz-me o que de mim amaste noutros corpos noutras camas noutra pele





















desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
- e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

Alice Vieira

domingo, 24 de outubro de 2010

Hang Down Your Head

Ainda do disco de tributo a Tom Waits por vozes femininas




...não acabariam um com o outro, pois iam demasiado adiantados na vida...




Depois de o comboio partir, de ela ter ido, depois do derradeiro beijo com a máquina já em movimento, ele fica ali, na estação, ainda uma hora, a despedir-se dela, a pensar nela com a saudade deixada a pairar na memória do seu perfume, do último abraço. Fica ali, preso à nostalgia da partida, a tomar um café com o cais de embarque à vista, observando outros casais que se separam com os comboios que seguem viagem e outros que se reúnem com os comboios que chegam.
Para trás ficam umas férias encantadas, só os dois, juntos, com aquela sensação feliz de perenidade que perdurou enquanto, nos braços um do outro, garantiam que era para sempre sem se quererem lembrar de que era só por uns dias. Nesse tempo exíguo passearam por muitos lugares, mas faltar-lhes-ia ainda uma vida inteira para continuarem a passear, a visitar todos os recantos de todos os lugares que sonharam ver sem a ansiedade dos dias contados.
Ali sentado na esplanada que dá para o cais da estação, ele dá consigo a recordar-se dos momentos bons que passou com ela, das conversas exclusivas, das mãos dadas ao final da tarde numa praia, de uma piada trocada entre os dois, de uma gargalhada. Lembra-se de cada pormenor do seu corpo, de passar as mãos pelo seu cabelo comprido acabado de lavar, do seu sorriso único, do seu sentido de humor. Revê-se a abrir os olhos e a descobri-la ao seu lado ao despertar da manhã numa cama demasiado pequena para tanto amor.
Um dia, há não muito tempo, ela disse-lhe que não poderiam ficar juntos, que não acabariam um com o outro, pois iam demasiado adiantados na vida e estavam ambos presos às escolhas do passado, mas depois o desejo foi mais forte do que a razão, depois ela não quis saber de nada e veio e, observando agora os namorados que se despedem à porta do comboio, ele pergunta-se quando a voltará a ver e decide que, não obstante as contrariedades que os separam, quer ir ao seu encontro e irá mesmo, inevitavelmente, reencontrá-la em breve.
Acaba o café sem pressa de deixar o lugar onde a viu pela última vez, levanta-se, encaminha-se para o átrio da estação, olha ainda para trás, espreitando por cima do ombro como se fosse possível ela não ter partido e estar ali, algures no cais, à procura dele. Depois vai-se embora, assegurando-se de que tem o telemóvel na mão e de que está ligado. Quando o comboio partiu ele tentou dizer-lhe uma última palavra, uma última recomendação, mas as portas já se tinham fechado e ele deu consigo a pensar o que não lhe conseguiu dizer: telefona-me quando lá chegares.

Tiago Rebelo

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Satisfaction

vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite














































Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vem
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem
antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne
a paixão derrama-se quando tua ausência
se prende às veias prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uma aquisição nova, um disco chamado Female Tribute to Tom Waits. Uma das versões é esta Tori Amos... e o original




Casa das histórias

Emociono-me com a inocência daqueles que não percebem que tudo é definitivo e deixa marcas























Estava na Alemanha, num encontro de escritores, e, todas as manhãs, no pequeno-almoço do hotel, havia uma mesa de homens portugueses. Em voz alta, acreditando que ninguém os entendia, libertavam-se a contar as suas aventuras com prostitutas polacas e os seus negócios de Mercedes em segunda mão. Num desses dias, um deles apontou para a minha orelha e disse: olha para este, parece que caiu em cima de um monte de pregos.
Noutra ocasião, estava no Luxemburgo, também num encontro de escritores. Preparava-me para almoçar, conversava com um poeta holandês, enquanto dois homens iam servindo salada em todos os pratos da mesa. Um deles chegou perto de mim e, em português, disse ao outro: olha para este animal, tem o braço todo o sujo. Dessa vez, não fiquei em silêncio. Disse-lhe: por acaso, até tenho o braço bastante bem lavado. Mudou de cor.
Não preciso destes dois exemplos breves para saber aquilo que muitas pessoas pensam repetidamente, todos os dias, e que não me dizem por pudor. Desde que cobri o braço esquerdo com tatuagens que sei aquilo que sentem as mulheres com decotes. É muito frequente o olhar das pessoas que estão a falar comigo fugir-lhes para o meu braço. Depois, disfarçam. No caso dos piercings, é mais inconsciente. Estão a falar comigo e, de repente, começam a ter comichão na sobrancelha, exactamente no lugar do meu piercing.
Eu conheço bem a interpretação geral dos piercings (drogado/homossexual) e das tatuagens (drogado/presidiário). À minha frente, já se referiram aos meus piercings dezenas de vezes corno «os brinquinhos». Já fui tratado com desprezo por dermatologistas que acharam que eu não tinha o direito de estar no seu consultório, por estas palavras. Já fui analisado por inúmeras mulheres, senhoras, que, como se estivessem a aproximar-se de uma ferida, perguntaram: isso dói?
Eu compreendo essas pessoas, tanto os putanheiros que negoceiam Mercedes, como as senhoras que comem palmiers na confeitaria. Compreendo até os dermatologistas. À sua maneira, cada um deles se sente rejeitado pelas minhas tatuagens e pelos meus piercings. Acreditam que eu não quero ser corno eles, não quero ser eles. Têm de responder de alguma maneira a essa rejeição. É-lhes fácil encontrar falta de sentido em furar o corpo com urna agulha e colocar um pendente metálico ou em preencher urna parte da pele com cicatrizes cheias de tinta. Urna pergunta que também me fazem, visivelmente baralhados, é: porquê?
As razões não são simples e são demasiado íntimas. Não tenho de dá-las. Talvez seja necessário ser eu, estar no meu lugar e ter o meu nome para entendê-las por completo. Essa é a natureza da pele. Para nós próprios, a pele é aquilo que nos protege, a fronteira entre a nossa presença e o mundo físico, o aparelho sensível que capta a percepção daquilo com que interagimos. Para os outros, essa mesma pele é a nossa superfície, a aparência. E, já se sabe, a aparência é tão enganadora, a superfície é tão superficial.
Também é comum admirarem-se com o carácter definitivo das tatuagens, perguntarem-me se não tenho medo de me arrepender. Sorrio. Emociono-me com a inocência daqueles que não percebem que tudo é definitivo e deixa marcas. Eu escrevo livros. Sei que tudo é definitivo e nada é eterno.
Sim, dói fazer piercings e tatuagens.
Não, não são urna picadinha e não, não são umas cócegas. Para quê fazê-lo?
Já respondi, cada um terá as suas próprias razões. São individuais e ninguém deveria sentir-se ameaçado por elas. Quando pedi a opinião da minha mãe, urna mulher que nasceu no início dos anos 40 e que me trouxe ao mundo nos anos 70, ela respondeu: desde  que não seja no meu braço, tudo bem. Fiquei feliz por ter a aprovação que realmente me importava. Tudo óptimo, mãe, é no meu braço.
Além disso, a vida. Na escola do meu filho, sou o pai tatuado que passa entre os pais de fato. No supermercado, sou aquele que é vigiado pelo segurança a pouca distância. No barbeiro, sinto o embaraço no momento de me tocarem na orelha. Mas, quando estaciono o carro, os arrumadores tratam-me sempre por tu e ninguém mete conversa comigo quando vou a urna bomba da gasolina às quatro da manhã.
Em casa, torno banho. A água morna na minha pele. Deslizo as mãos pelo meu corpo. É meu. Estou dentro dele.


José Luis Peixoto

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Là ci darem la mano

Um disco nove da Cecilia Bartoli é sempre um motivo para celebrar e este Sospiri não foge à regra


Poderia dizer-te...das órbitas onde gravito em cada sorriso teu

























Poderia dizer-te dos tendões e das mãos onde eles percorrem
o seu destino. Poderia dizer-te dos olhos se quisesse ser fácil
este verso, dizer-te do mar e ser evidente, ou das órbitas onde
gravito em cada sorriso teu e construir metáforas. Do fascínio
que as sobrancelhas me impõem nos dedos, dizer-te das nossas
conversas na faculdade, entre as teóricas e a foz, entre os
livros de ecologia dois e a tua ternura enquanto dissecavas,
tão gentilmente, o polvo. Dizer-te da lula, não do polvo, quis
mentir para esbracejar versos como tentáculos, manter viva
a tinta, a inteligência mais reconhecida. Ou dizer-te do choco
– era, isso sim, um choco de carapaça dura com que percorrias
o bisturi e onde mantinha o meu dedo segurando-lhe a pele e
entregando, desde cedo, o meu corpo ao teu cuidado. Poderia
dizer-te do sangue no corte profundo dos meus tendões, mas
quero saber o leitor focado antes nos teus, nas mãos com que
disse o primeiro verso. Vou dizer-te: os lábios. Como quem
diz nariz mas não pode, os poemas em que se dizem faces não
permitem outra pele que não a dos lábios, outro cheiro que não
o teu, outra boca que não a tua, próxima, interrompendo frases
e subindo colinas como só estes versos longos sobem. Poderia
dizer-te tudo mas tudo ficaria inaudito. Não há poema, em cinco
séculos de literatura, que te compare a elegância nos versos.
Nem Camões, nem Florbela, nem a nossa Rosário sussurrando-nos
a voz que conhecemos nos ouvidos quando a lemos, ninguém.
Pretensão enorme a minha, portanto, ultrapassar o feito e
inaugurar linguagem – aquela que te descreva como deve.
Poderia dizer-te se o soubesse como; ou o pudesse, pelo menos,
trazer dos versos do Ruy Belo como empréstimo, elaborar o meu
Elogio de Maria Teresa mudando-lhe o destinatário e em muito
as suas palavras. Poderia dizer-te se essas mesmas palavras
permitissem impor uma mulher no centro de uma vida, uma
menina inglesa, trazida também de Cambridge, quem sabe, uma
elegância alta e vertical e desejada, um cabelo e os óculos escuros,
poderia dizer-te. Mas não. Que a minha memória desafia o
leitor a imaginar os versos que não escrevo, dizer-te poema
final e definitivo, da completude dizer-te amor.

Jorge Reis-Sá

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Good feeling won't you stay with me just a little longer

E o corpo doeu-me onde antes os teus dedos foram aves de verão





































Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha camisola;
e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira na
rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 10 de outubro de 2010

É tão bom... voar de encontro à tua mão

À espera que a chuva pare



A música que o pianista toca no seu canto do bar é ‘If You Don’t Know Me By Now’. Os seus dedos parecem pairar sobre o teclado e a sua voz vem-lhe da alma, não obstante não haver ali praticamente ninguém para o ouvir, pois canta só pelo prazer de cantar.
Sentado a meio do balcão, rodeado de bancos vazios, um cliente solitário escuta a música, atento à história que a sua letra conta. A música acaba e ele vê o pianista olhar contemplativo para as teclas, como que espantado com a magia que faz com elas e com a beleza da música. Vê-o assentar as mãos nas pernas, soltar um suspiro e abanar a cabeça com um sorriso, antes de se levantar lentamente e retirar-se por uma porta dos fundos.
Ao cliente solitário apetece-lhe o mesmo, um suspiro e uma saída pela porta dos fundos, onde quer que ela vá dar. Tem os cotovelos apoiados no balcão, um dedo pensativo faz rodar o gelo dentro do copo. Já passa da meia-noite e ainda chove lá fora, são as primeiras chuvas do Outono. Ele está a pensar na mulher que ama, a pensar que hoje ela não está e, quando ela não está, não sabe o que fazer com o seu tempo. Há já algum tempo que não sabe o que fazer com o seu tempo. Pede mais uma bebida, enquanto espero que a chuva pare, diz ao empregado em jeito de justificação. O homem força um sorriso instantâneo, indiferente, e deposita à sua frente um copo atestado em menos de um minuto. Bebe um pouco, pousa o copo, acende um cigarro.
Faz desenhos no cinzeiro, com a cinza, com a ponta do cigarro. Pensa na mulher que ama como uma recordação feliz. Um dia, ela partiu em busca de qualquer coisa. Agora já não têm solução, embora estejam os dois sem saber o que fazer ao tempo.
Apaga o cigarro, acaba a bebida, paga a conta.
Chega à porta do bar e verifica que já não chove tanto, só os pingos que restam do aguaceiro. Pensa nela uma última vez e, sem se dar conta, encolhe os ombros a ponderar no tempo que tem perdido a pensar nela, inutilmente. Na verdade, não estava ali à espera que a chuva parasse, mas que ela viesse. Ela não veio e ele decide não esperar mais, nem hoje nem nunca. De repente, percebe que o desinteresse dela não é assim tão importante, não merece a desilusão que o tem perturbado. Anima-se com a sua decisão, sentindo-se como se tivesse tirado um peso de cima dos ombros. Enfia as mãos nos bolsos e sai para a noite a pensar que amanhã será um dia melhor.


Tiago Rebelo

sábado, 9 de outubro de 2010

Alice

Isto já passa amigo


























Duzentos euros por mês não dão para grande coisa: uma sopinha e uma maçã ao almoço, uma sopinha e uma maçã ao jantar. Nos intervalos pede-me cigarros

- Não há por aí um cigarrinho a mais, doutor?

ou senta-se nas esplanadas até o mandarem embora, tratando-o por tu

- Põe-te a andar

e ele lá segue para o café próximo a arrastar um sapato sem atacadores. Não aceita esmolas, não aceita dinheiro, só pede cigarros aos amigos

- Só peço cigarros aos amigos

de acordo com o seu código aristocrático de miséria. Quando quis oferecer-lhe uma camisola recusou ultrajado

- Sou algum infeliz, eu?

e levou uma semana a perdoar a minha incompreensão da sua dignidade

- Você pode ser doutor e escrever livros mas não percebe nada da vida

e tem razão, não percebo nada da vida. O seu maior orgulho é ter feito a tropa em Chaves

- Em Chaves, senhor

e eu, que nunca fui a Chaves, esmagado de respeito por Chaves pela maneira como ele fala

- Quem não conhece Chaves conhece pouco do mundo

e tem razão outra vez, conheço pouco do mundo. Pergunto-lhe

- Como é Chaves, senhor Ismael?

e em vez de resposta olha-me, durante uma eternidade, com pena sincera, até erguer ao alto, por fim, a mão de unhas duvidosas, unidas em cacho para dar ênfase à maravilha da cidade. A mão acaba por descer a fim de aceitar um cigarro

(um cigarrinho)

e o senhor Ismael a estender-se para a labaredazita do isqueiro

- Tem montanhas perto

e o

- tem montanhas perto

deixado cair como uma moeda fora da circulação, pequena condescendência a um ignorante que não merece que se gaste tempo em explicações. Depois de tossir o fumo acrescenta

- E outras coisas

submerso em inesquecíveis lembranças militares, paisagísticas, amorosas

- Gajas boas não faltam

gajas boas a inundarem, só para ele, as ruas de Chaves, sorrindo-lhe, piscando-lhe o olho, chamando-o num sussurro prometedor

- Ismael

e o senhor Ismael, é claro, a dar conta do recado

- Sempre dei conta do recado, doutor

fossem dez, vinte ou cinquenta

- Pelos ossos da minha irmã que está na cova que aviei seis numa tarde

sem tirar o bivaque de magala

- Mostre-me uma mulher que não goste de fardas

as mulheres e o senhor Ismael gostavam de fardas, puxou de uma espécie de carteira que, com o tempo, adquiriu a forma da sua nádega, na carteira o retrato seboso de um soldado

- Soldado vírgula, amigo, cabo ferrador

o retrato de um cabo ferrador, cheio de infância na cara mas inigualável a aviar, em que levei tempo a descobrir a criatura de agora, já sem infância nenhuma na cara, pregas, cicatrizes, a pele a lembrar-me o mapa de Portugal da minha escola, com uma cagadela de mosca no Alentejo e uma segunda mesmo ao lado de Faro, nas feições do senhor Ismael também os pontos negros das cidades, rugas iguais ao Guadiana e ao Douro, a ponta de Sagres do queixo, o estuário do Tejo da boca e, a propósito de boca

- Não se arranja um bagacinho que tenho a língua seca

mostrando-ma a sair das gengivas desmobiladas, guardando-a de novo

- Sequíssima

pronta à lubrificação do bagaço, metido na goela de uma só vez, à homem

- Quem não mete o bagaço de uma só golada não é homem nem é nada

seguido de soluços e lágrimas afastados com desprezo pela manga

- A gente envelhece

e no meio das lágrimas do bagaço uma lágrima diferente, que ele percebeu que eu notei dado que

- Isto passa

de súbito quase menino, quase aflito, quase a abraçar-me, o retrato do magala por uma pena, cheio de infância na cara. Disse

- Doutor

repetiu

- Doutor

e ficámos os dois que tempos em silêncio porque na realidade o

- Doutor

um discurso compridíssimo, com todas as suas desgraças dentro. Passado um grande bocado acrescentou

- Tenho dormido num degrau, sabia?

levantou-se da cadeira e foi-se embora, aposto que sem pensar em Chaves, nos montes, nas gajas, todo inteiro no interior de uma incomodidade com picos que o atormentavam, o filho morto em criança, a mulher ida com um caixeiro viajante, os duzentos euros, a sopinha. Mas havia de acabar por animar-se

- Isto já passa amigo

porque não há azares que um cabo ferrador como deve ser não aguente, em sentido para o toque a silêncio, que nos mexe a todos por dentro e é o mais bonito que existe.

António Lobo Antunes

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

You never can tell

Apenas busco um ombro onde a cabeça retome o exercício de acreditar


















Não procuro vantagem nem me interessa

tirar qualquer benefício
de te amar.
Apenas busco um ombro onde a cabeça
retome o exercício
de acreditar.

E não desejo outro ofício
em que me ocupar.



Torquato da Luz

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Quizás

Apesar de adorar os dois acho que sempre preferi este senhor ao Compay Segundo







































É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, teu perfil exacto
e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frémito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale subtilmente, no ar,
a trevo machucado, as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir como sinto
- em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Mario Quintana

As minhas coisas favoritas

Uma das melhores coisas que se fez por cá nos últimos tempos, a série Mundo Catita:



Há no meu ombro lugar para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida palmo a palmo pela tua mão ferida



















Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que, lida
e soletrada, descubro inatingível como o vento, a rua e
a vida.
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores.
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora.
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo,
não há em mim memória de alguma morte,
em nenhum outro lugar me edifiquei.
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer,
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive.
Eu sei que só tu sabes o meu nome
- tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida.
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida.



Ruy Belo

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tonight, You Belong To Me

Noturnamente te construo para que sejas palavra do meu corpo


















Noturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Mia Couto

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Cabaret

Tu és o nó de sangue que me sufoca

















Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Helder

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Então os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar

Devias estar aqui rente aos meus lábios




















Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum


Eugénio de Andrade