quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

No fundo, as relações entre mim e ti cabem na palma da mão




















No fundo, as relações entre mim e ti
cabem na palma da mão:
onde o teu corpo se esconde e
de onde,
quando sopro por entre os dedos,
foge como fumo
um pequeno pássaro,
ou um simples segredo
que guardávamos para a noite.




Nuno Júdice


Contigo aprendí que tú presencia no la cambio por ninguna

Quand me vient l'eau à la bouche

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

hoje tenho o teu rosto dentro de mim

















o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.




José Luís Peixoto


Subir subir

Carlos Guerreiro, João Salgueiro e companhia.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Porque me alimento da tua boca e na palavra me sustento em ti.




























Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.



Daniel Faria


O casamento da rosa

Lello da Câmara Nespereira

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

até que voltas para junto de mim, e tudo recomeça







































Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:
assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.



Nuno Júdice

Love Will Tear Us Apart

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram... Para ti dei voz às minhas mãos
























Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida





Mia Couto

que eu fico aqui, eterno, à tua espera

Quero que gostes de Pina Baush, ou até já nem gostes, queiras mais queiras diferente; que gostes da cor e do risco forte de Miró e do canto desiludido e fundo de Ferré; quero que aprecies os cheiros sensíveis da eternidade do grande bruto grande e do pequeno sensível e pequeno; quero que mores nas páginas da Photo e que, sendo um modelo de virtudes representes a cortesã mais lassa para mim; quero-te com mãos de pedra e de veludo; quero que ames o chique e a Serra d'Aire - mais o safari que a recepção, quero que mores e sofras nas páginas de Guido Crepax e que te irrites com a perfeição absoluta de um retrato de Medina quero que, se possível vivas dentro do anúncio do Martini felina e ondulante numa ilha tropical quero que sejas capaz de divertir-te, de soltar uma ampla gargalhada, ante o espectáculo ridículo e obsceno de um homem de Quinhentos a quem atribuíssem um número de contribuinte quero que ames o longe e a miragem, como o Régio e que sejas louca e sábia que tenhas lábios e mordas, língua e sorvas, sexo e sexes, salto e salto, riso e rias, sorvedouro inteiro de vida, arrepio de garça, sacudir de cisne, passos de corsa, graça de arlequim, pose de Diva, corpo de areia e luz. E quero que me dês, me dês muito, que me dês tudo, e que abras as janelas de par em par ao Tejo e fecundes um poema em cada gesto e voes como a gaivota em cada espreguiçar e partas para a Índia em cada cacilheiro e que sejas, mores, vivas e creias longe muito longe daqui... quero que sejas profundamente minha e ritual obsessiva e lúcida, doente, febril, tremendo de desejo disposta a tudo e a mais e a muito mais, boca de Mundo, seios de Mármore, corpo de Alfazema e sobretudo Mulher e sobretudo amante. Se existires assim, nua, inteira, absoluta e pessoal responde-me que eu fico aqui, eterno, à tua espera.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma





































Havemos de engordar juntos.  

Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz “cliente seguinte”, estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a aguardá-las nos sacos.  

As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes : responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear do momento.

É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirmam a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir as tarefas, há a possibilidade de se ser snob, critico literário, quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno almoço, quando estivermos a pôr a roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, refletidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se estivéssemos uma deficiência na fala.  

Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.

As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más e filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as telenovelas, também servem.  

Havemos de engordar juntos.  

Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.  

Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior, ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.  

E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.  

Nós acreditávamos.  

Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.

José Luis Peixoto

Fly me to the moon

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Reparto contigo um óleo inesgotável que trouxe escondido aceso na minha lâmpada




























Falei de ti com as palavras mais limpas

Viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,

tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.



Fernando Assis Pacheco



Merkozy

sábado, 14 de janeiro de 2012

dá-me qualquer coisa que me pareça eterno





































Cada instante é um lugar perdido em que te entregas
à passagem do tempo. A juventude é um vício
que perdemos inevitavelmente. Dizes: é breve o amor,
efémera a vida.

Somos uma estância museológica,
algo anacrónico que aprende a perdurar por medo
de morrer. Toca-me, conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo, soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvida, dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

Basta-me que o teu olhar me encontre.

José Rui Teixeira

When you're smiling

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.





















Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.


Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.


Não esqueças sobretudo de olhar devagar.




Vasco Gato

Ain't no sunshine when she's gone