segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Às vezes se te lembras procurava-te retinha-te esgotava-te e se te não perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te


























Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo





Teadrops

Uma das vozes mais bonitas de sempre, Liz Fraser

sábado, 24 de dezembro de 2011

Se calhar é sempre de noite quando a gente cresce



















Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: Benfica mudou, a minha mãe deixou de ter 30 anos, posso fumar sem que ninguém me proíba, quando vem a travessa para a mesa nunca são fatias recheadas, não encontro os meus irmãos de pijama, com os cabelos loiros molhados do banho. A casa dos meus pais não se alterou muito: os quartos dos filhos transformaram-se em salas mas o cheiro é o mesmo. Há retratos de mortos: os meus avós, alguns tios, algumas tias, mortos que nunca me habituei ao facto de estarem mortos, que não me espantaria se entrassem de repente, pessoas que fazem uma falta dos diabos a quem não faço falta nenhuma porque nada agora lhe faz falta quanto mais eu. Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: não conheço as pessoas nem os prédios, o Paraíso levou sumiço, a Havaneza evaporou-se, não sei da dona Maria José contrabandista, não sei do maluco dos passarinhos, há séculos que não vejo o meu pai fazer a barba, há séculos que minha mãe, com a tesoura pequenina não mão, não me diz

- Mostra lá os dedos

para me cortar as unhas. Sou eu que as corto sozinho com um corta-unhas e como sou aselha demoro eternidades a apanhar as aparas nos azulejos com o indicador molhado em cuspo. E corto-as em silêncio, sem berrar como um vitelo, a minha mãe espantada

-Ainda nem comecei

a minha mãe que nos cortava as unhas, nos dava injecções, transformava as camisas do tio Eloy em camisas para nós e como sou o mais velho estava sempre grávida, João Pedro Miguel Nuno Manuel. Saio de lá com a infância atravessada e fico no automóvel a ver o muro do jardim, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite, a Travessa do Vintém das Escolas na mesma excepto o Cabecinha que não tornei a ver, Não Sei Quê da Costa Cabecinha, num rés-do-chão de peitoril à altura do passeio, com quem me apanharam a pedir para o Santo António e que tinha fotografias de mulheres nuas, rectângulos de papel negro com criaturas desfocadas que não se percebia peva e ele achava que sim

- Olha as mamas da gaja

eu cheio de vergonha e boa vontade sem perceber mamas nenhumas e o Cabecinha a guardar aquelas preciosidades no bolso

- Seu artolas

e a partilhar os tesouros com os Ferra-o-Bico que eram mais esclarecidos que nós, se entendiam em glândulas e levavam miúdas ciganas para o mato atrás da Escola Normal a fim de procederem com elas a operações misteriosas. A infância atravessada é pior que uma espinha: a gente engole bolas de pão e não passa. Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando lá vou me sinto como um cão à procura de um osso que julga ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama.

(está lá, a minha cama)

como me procuro no quintal, na figueira do quintal, no sítio em que havia o poço, em que havia a capoeira, de modo que depois do jantar fico no automóvel a ver o muro, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite. Se calhar é sempre noite quando a gente cresce. Fico no automóvel à espera que a minha mãe me chame e sabendo que não me chama porque julga que me fui embora. Realmente fui-me embora. Para sempre.


António Lobo Antunes

Tenho um nó que não desata e tu ataste para sempre no meu peito a vida inteira

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Diz-me assim devagar coisa nenhuma






































Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como outra solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?


Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.



Jorge de Sena

Happy Xmas

sábado, 17 de dezembro de 2011

Vem aos meu sonhos, vê os labirintos por onde me perco
























Vem aos meus sonhos,
faz em mim a tua casa.

Planta, em frente,
a cerejeira dos pássaros brancos,
deixa que eles pousem nos ramos
e cantem eternamente,
deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu nome,
antes de os relâmpagos acenderem os prados.

Vem aos meu sonhos,
vê os labirintos por onde me perco,
vê os meus países do mar,
vê, em cada barco que parte do meu coração,
as viagens que não fiz, os amores que não tive,
a lua cruel da minha solidão.

Vem aos meus sonhos,
traz um fio de água para as dálias
do meu quarto vazio,
não queiras que as suas pétalas
sequem muito depressa,
caindo pelos delicados muros de cristal,
apagando a cor que dava vida
aos aposentos do solitário.

Deixa que ele evoque a secreta
doçura das colmeias,
e vem,
vem aos meus sonhos,
ilumina o meu domingo de cinzas,
o meu domingo de ramos, o meu calvário,

diz que estás aqui,
nesta página que escrevo para nunca te esquecer.



José Agostinho Baptista

Christmas In New Orleans

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

talvez um dia quem sabe o destino volte a ter novos contornos e nos olhe de frente























até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis


pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado

talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti



Alice VIeira


Mais espírito natalício

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Porque é de ti que me vem o fogo



























Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.




Herberto Helder




White Christmas

Mais espírito natalício

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Porém, se me levanto, não faço mais do que arrastar a solidão pela casa








































O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam as minhas noites. Depois de teres
partido, os lençois da cama são como limos frios
que se agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;


talvez procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio, como um pombo cego a debicar
as sombras na única praça deserta da cidade —


o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.


Maria do Rosário Pedreira

The Boss

Mais do meu espírito natalício

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

sem um tremor a mais, abraço-me às tuas ausências




























Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses de muito tempo
e beijos bem-vindos
de primeiras de troca
e de último vagão

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tacto e por sabor

sem um tremor a mais,
abraço-me às tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de vós

Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição

Meus hóspedes concorrem,
concorrem como sonhos
com os seus rancores novos
sua falta de candura
eu coloco-lhes uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de vós

Porém o rosto de vós
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como alimentos
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagam a minha jornada.

as paredes vão-se
fica a noite
as nostalgias vão-se
não fica nada

Já meu rosto de vós
fecha os olhos.

E é uma solidão
tão desolada.



Mario Benedetti


Santa Claus is coming to town

Este ano estou com o espírito da época.

sábado, 26 de novembro de 2011

O infinito afinal fica aqui ao pé da gente





































Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!

Diz a outra: “Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!”

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

Night breezes seem to whisper I love you

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

hoje, vou correr à velocidade da minha solidão


















Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto

People are strange

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue























Se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o  meu corpo da espuma dos planetas.
não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca.
e de luar em luar celebra o coração que fiz teu, mudamente,
como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue.

Vasco Gato

Sometimes I can not sleep for I miss you

domingo, 20 de novembro de 2011

Mas depois, virando a esquina... esperam-me apenas as aves que ninguém sabe de onde partiram


















Caí no silêncio há vários dias. Quero falar-te das horas incandescentes que antecedem a noite e não sei como fazê-lo. Às vezes penso que vou encontra-te na rua mais improvável, que nos sentamos diante do rio e ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes: a tua solidão, por exemplo. Mas depois, virando a esquina, todas as esquinas de todos os dias, esperam-me apenas as aves que ninguém sabe de onde partiram.


Vasco Gato

Abraça-me bem e cobre o meu corpo nesse agasalho... cuida de mim

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera
















Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.


Joaquim Pessoa

O Charlatão

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

...nem há maneira da máfia napolitana tomar conta da miséria deste país. E, já agora, da minha miséria, feito parvo à tua espera...




















Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora, Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze táxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas, Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover. Começou a chover e não há um toldo onde abrigar-me, eu que não trouxe guarda-chuva, o céu sem nuvens quando saí de casa, previsão de céu sem nuvens para hoje, os camelos da meteorologia deviam ser fuzilados mas infelizmente não estamos em Cuba nem há maneira da máfia napolitana tomar conta da miséria deste país. E, já agora, da minha miséria, feito parvo à tua espera. Encosto-me ao prédio na esperança de me molhar menos mas as varandas, para além de pouco salientes, pingam-me gotas enormes na nuca: amanhã, está-se mesmo a ver, agonizo na cama a aspirinas, de termómetro debaixo do braço e a caixa dos lenços de papel quase vazia. Contar mais corcundas inútil, todos eles em casa, sequinhos, colados às janelas, a verem-me. Chegarás antes de acabar a chuva?

Que raio de ideia, ter-te marcado encontro neste sítio, porque diabo não escolhi uma pastelaria, um café, um centro comercial, tudo menos uma esquina que me disseste ser perto do teu emprego para acrescentares, logo a seguir, juras de pontualidade, e eu a acreditar em ti, combinámos às cinco horas e, desde a um quarto para as cinco, que estou aqui plantado, ora num pé ora no outro, a confundir-te com todas as pessoas que se aproximam, uma mulher ao longe e eu, de imediato

- É ela

de coração aos baldões e mãos suadas, a mulher sempre outra mulher, nem me olha, aliás espanta-me que me tenhas olhado, nunca tive grande sucesso, nunca se apaixonaram por mim, pode ser que uma vez mas tenho dúvidas, chamava-se Carla, trabalhava na recepção de um hotel, o olho esquerdo fugia-lhe e o olho esquerdo afastou-me, pensava que as estrábicas chorassem de maneira diferente mas não, ainda me escreveu, não respondi, ainda me telefonou, não atendi e depois a cidade comeu-a, julgo que continua em qualquer lado, engolida pelo hotel, engolida pelo prédio onde mora com a mãe, engolida pelos anos que devoram tudo, a começar pelo esquecimento. E, depois, tu, Quer dizer quase não nos conhecemos, ficamos em mesas lado a lado na pizaria, a má criação da empregada uniu-nos, o gosto comum pelas lasanhas vegetarianas tornou-se uma ponte entre nós, a falha no verniz do mindinho enterneceu-me, marcamos este encontro para um cinema, despedimo-nos com um passou bem demorado que me soube a beijo, afastaste-te sem olhar para trás, depois de me teres consentido pagar a tua lasanha, cada qual com o seu porta-moedas na mão, guardaste-o, a contragosto, na carteira

- Da próxima sou eu que pago e não admito recusas

a próxima vez que é hoje, espero que jantar depois do cinema, espero que segurar a tua mão que hesita, tiro, não tiro, acaba por ficar, espero que um joelho, espero que uma bochecha no meu ombro, um primeiro beijo tímido, um segundo que se abre em corola, um suspirozinho, dedos exploradores no automóvel, cautelosos, medidos, arrumei o apartamento, deixei a cama feita, comprovei que não era grande espingarda a fazer camas, o lava-loiças limpo, os cinzeiros limpos, o jornal de ontem no balde, música suave, pronta a funcionar, na aparelhagem, basta carregar num botão e caem-te violinos em cima, um amigo meu garante que os violinos amolecem as mulheres, acrescenta

- Não me perguntes porquê mas amolecem

e não tenho motivos para não acreditar no rapaz, três casamentos, três divórcios, experiência, a chuva parece abrandar e eu feito um pinto, se calhar esqueceste-te, se calhar não pensaste mais nisso, nem o teu nome sei, para ser sincero não me lembro muito bem como és, altura média, acho eu, cabelo castanho, acho eu, ou com madeixas, não seria capaz de esclarecer, quem me garante que não te cruzaste já comigo, enquanto eu somava os sete homens carecas, sem te lembrares de como sou igualmente, quem me garante que não estavas à espera que eu sorrisse para me falares e, como não sorri, decidiste, desiludida

- Espera outra pessoa, vou-me embora e não esperava outra pessoa, que pessoa, esperava-te a ti, espero-te a ti, de maneira que, agora que a chuva parou, vou recomeçar a contar de um a cem e de cem a um, recomeçar a contar automóveis pretos, táxis vazios, homens carecas, mulheres loiras, ambulâncias e corcundas, com um gosto de lasanha vegetariana na boca, seguro de que não terei que me ir embora porque vais chegar.


António Lobo Antunes

Lay down in the green grass remember when you loved me

domingo, 12 de junho de 2011

nos dias tristes é inverno e anda-se ao frio de cigarro na mão





























nos dias tristes não se fala de aves
liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

nos dias tristes é inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento
e diz-se bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso

nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.


filipa leal

Moon River

terça-feira, 7 de junho de 2011

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Imagens que são máscaras anónimas







































Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram.
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido.
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão.

Miguel Torga

Eu não sei quem te perdeu

terça-feira, 17 de maio de 2011

e o esquecimento acredita é a mais lenta das feridas mortais

















Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

Alice Vieira

Portugal alcatifado

Gostei dos supositórios reboredo, não precisa meter o dedo

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo



















Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Quantos são hoje? Nunca sei às que ando, confundo tudo, perco-me sempre, os dias, as horas, às vezes cumprimento pessoas que não conheço, há uma semana ou isso entrei num antiquário, sentei-me a uma mesa D. João V e quando a senhora da loja veio, de uns armários franceses ou lá o que era, pedi-lhe que me servisse um uísque. Uma senhora com mais pulseiras que tu e anéis caros, de maquilhagem a lutar com a idade e a perder. Ficou a olhar para mim de cara ao lado. Depois perguntou-me se eu estava bêbado e depois começou a medir a distância entre ela e a porta a fim de chamar por socorro. Numa das paredes paisagens emolduradas a talha, o retrato de uma viscondessa decotada, estampas de cavalos com legendas em francês. A viscondessa usava um anel no indicador rechonchudo e tinha cara de jantar bicos de rouxinol todos os dias, servindo-se dos talheres como se cada dedo fosse um mindinho, desses que a gente enrola para beber o café. A minha irmã, pelo menos, enrola. Eu sou mais para o género de o esticar, tipo antena. Educações. Tu não enrolas nem esticas, deixas a mão inerte na minha. Não te apetece apertar-me, não tens vontade de ser terna? Gostava que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava-te quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo. Segundo a minha irmã sou só parvo. A propósito de tudo e de nada
- És tão parvo
e eu, mudo, a dar-lhe razão no fundo de mim, lembrando-me que na escola era um castigo com a Geografia, capitais e rios e países tudo misturado. Continuo a misturar. Não me peças, por exemplo, para mostrar a Noruega num mapa. E conheci em rapaz uma norueguesa na praia, a pôr creme nas costas de uma amiga. Passados os primeiros embaraços pôs-me a mim também. Espero que tivesse os mindinhos enrolados. Ofereci-me para lhe pôr a ela. Por gestos fez que não com a cabeça e o brinco esquerdo caiu. Acho que começou a ceder quando o procurámos ambos na areia, uma argola com coisinhas penduradas. O que me atrai nos brincos é as mulheres terem-nos, é o momento em que os prendem na orelha, de queixo esticado e olhos vazios. A mesma expressão, aliás, ao procurarem as chaves na carteira. Parece que se ausentam. Depois voltam a estar ali ao rodarem a fechadura. Esfrego sempre os sapatos no capacho antes de entrar
(educações)
e avanço devagarinho pelo tapete quase persa fora à medida que lhes percebo um expressão de
- Como é que me vejo livre deste?
a aumentar, a aumentar. Também é nisso que pensas, responde?
- Como é que me vejo livre deste?
e a tua mão cada vez mais pequena sobre a minha, o teu lábio inferior a cobrir o superior ou seja
- Para que me fui meter num sarilho?
as tuas pernas longe, o teu corpo longe, a tua bochecha longe a gritar em silêncio
- Deus queira que não me faça uma festa
os olhinhos a espiarem de banda, alerta, assustados, com receio de mim, eu que não faço mal a uma mosca, nasci pacífico, hei-de morrer pacífico e no intervalo entre o nascimento e a morte sou um paz de alma. Nem entendo a reacção da senhora do antiquário, se calhar neta da viscondessa do anel. Ou bisneta. Ou filha, que a maquilhagem, coitada, pouco conseguia. Deve haver dúzias de centenários por aí, refugiados atrás dos cremes, vacilando nos joelhos magros. Dentaduras postiças a dar com um pau, aparelhos para ouvir, lentes de contacto que se esforçam, se esforçam
- Não te vejo bem rapaz
pobres misérias cuidadosamente ocultas. Ainda sou novo apesar da hérnia, devo ter mais uns tempitos à minha frente e o que farei com eles? Sento-me aqui, mendigo a tua mão ou aborreço-me sozinho? Não leio jornais, não me distraio com nada, aqueço um prato desses já feitos, lavo a loiça, volto ao sofá, derrotado. Ignoro quem me derrotou. Se calhar eu mesmo, se calhar a minha irmã, distantíssima agora
- Tão parvo
chegada dos limbos da infância com as suas sardas e a pupila torta que o doutor não curou. Na minha opinião a pupila torta não me achava tão parvo assim, compreendia-me. Há uma parte nos outros, defeituosa, frágil, que me compreende, se enternece comigo. Quantos são hoje? Não digas nada. Tanto faz. Um dia qualquer, não me ralo com isso: a minha vida feita de dias quaisquer a amontoarem-se uns sobre os outros, indistintos, moles, idênticos. A fotografia da minha mãe na estante, a censurar-me. De quê? Que mal fiz eu? Chamo-me João. Era para ser Arnaldo como o meu padrinho mas o meu pai insistiu no João.
De vez em quando sorria-me
- João
e ficava a repetir
- João
numa cisma contente. Dás-me licença que te beije? Não? Não te vás embora ainda, deixa-te estar. Apesar de tudo passámos um bocado agradável, não foi? A mim agradou-me. Gosto do teu cheiro. Se te apetecer voltar toca a campainha três vezes e carrego naquele botão que abre a porta da rua. E se me avisares com antecedência compro um bolo. Quando não estiveres cá e me sentir sozinho como as migalhas que sobrarem. Vou contar-te um segredo: há alturas em que as migalhas ajudam


António Lobo Antunes

Será que amanhã ainda existe para ti, ou ao ver-te nos olhos te beijei e morri.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Palavras, ou luz ainda?




















Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.

Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras? este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?


Eugénio de Andrade

O destino é um segredo

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Às vezes também tenho 19 anos






















Dezanove Anos
José Luis Peixoto


Aconteceu ontem, a meio da tarde, num jardim perto da minha rua. Ele tinha chegado havia quase uma hora. Tinha escolhido um banco livre entre os bancos que estavam ocupados por homens reformados  que falavam uns com os outros, que tentavam ver e perceber tudo o que acontecia no jardim. Ele não olhava para nada daquilo que lhe estava perto. Olhava para a distância. Precisava de pensar. Quando ela chegou
e se sentou no banco em frente, ele não reparou logo nem no seu rosto, nem no seu olhar magoado, nem na sua presença. Ela tinha dezanove
anos. Cabelos lisos a caírem-lhe por trás dos ombros e a espalharem-se pela superfície das costas. Ele tinha trinta anos mas, às vezes, também tinha dezanove anos.
  
Havia nuvens que moldavam o céu sobre os prédios. Era nessas esculturas que ele tentava resolver os seus pensamentos. Ela tinha o olhar fixo na relva cortada, silêncio verde vivo. Passaram poucos minutos até que os homens reformados se desinteressassem de olhar para ela. Continuaram as suas conversas de notícias do telejornal; o mundo está perdido, dizia um; e jogos de sueca na véspera, e jogos de futebol no fim-de-semana, e filhos que eram importantes; o meu filho foi promovido a chefe de departamento, dizia outro. Por isso, e também pela distância, não repararam na lágrima, seguida de lágrimas, que atravessou a pele do rosto dela e que lhe marcou um risco de água na pele. Não se sabe a razão mas, nesse momento, quase como se fosse chamado por alguma voz, ele baixou o olhar do céu e viu-a. Ela tinha a cabeça inclinada para a frente e os cabelos quase que lhe tapavam o rosto, mas ele distinguiu as lágrimas, o olhar magoado, o rosto. Pensou que talvez não pudesse fazer nada. Eram dois desconhecidos.  Ela tinha dezanove anos. Ele tinha trinta e sabia que ninguém no mundo, nem mesmo ela, poderia acreditar que, às vezes, tinha dezanove anos.

Mesmo assim, levantou-se e sentiu que os gestos do seu corpo eram
exteriores aos gestos e às contradições que existiam dentro de si. O som dos seus passos a deslizarem na terra. Aproximou-se dela. Sentou-se ao seu lado. E ficou em silêncio. Ela sentiu a sua presença mas não olhou logo para ele. Os homens reformados não perceberam nada para além da naturalidade.  Ela afastou os cabelos, olhou para ele e sorriu. Ele sorriu-lhe também. Ela disse-lhe o nome. Ele disse-lhe o nome. Falaram durante tempo. Quando se despediram, ela sorria. Ele sabia que tinha dezanove anos e sorria.  Ele tinha trinta anos e tinha a certeza de que o mundo não permitiria que se encontrassem de novo.

Ele era eu. Ela chamava-se Ana.

My baby just cares for me

quarta-feira, 30 de março de 2011

E devagar, sem te voltares, pelos espelhos entras na noite
























Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo
em que se perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.

É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.

Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.

Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.

E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.


Eugénio de Andrade

Avé Maria

quinta-feira, 24 de março de 2011

Aprendiz de ausências


















Morre
como quem desagua sem mar
e, num derradeiro relance,
olha o mundo
como se ainda o pudesse amar.

Morrer
depois de me despedir
das palavras, uma a uma.

E no final,
descontada a lágrima,
restar uma única certeza:

não há morte
que baste
para se deixar de viver.


Mia Couto

Me fui

Acabamos, mais cedo ou mais tarde, por acreditar no silêncio







































Trazemos no fundo do casaco
algumas canções usadas
— e achamos, por vezes, que
é para nós que as estrelas brilham,
entre prédios demolidos e amores também.


Acabamos, mais cedo ou mais tarde,
por acreditar no silêncio.
A felicidade, para outros, continua válida.
Mas disso, obviamente, nada podemos saber.



Manuel de Freitas

Solo quiero caminar

sexta-feira, 18 de março de 2011

Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se






















Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morri em ti e em ti os meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo.
Construí a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo ainda o teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

Joaquim Pessoa

Cómo decir que me parte en mil as esquinitas de mis huesos?

quinta-feira, 17 de março de 2011

Tudo o que nos abandona precisa de muito tempo para desaparecer










































Porque razão não voltaste a telefonar e me deixas assim, suspensa, à tua espera? Nem para o emprego (conheces o número do emprego) nem para casa, sabes que estou sozinha' não recebo ninguém, uma amiga de tempos a tempos que não impede que ligues, quando muito saio uma hora ou duas ao sábado para visitar a minha mãe, nunca vou ao cinema, nunca janto fora, como qualquer coisa por aqui, leio uma revista
(nem leio uma revista, folheio, vejo as fotografias e é tudo, ou antes nem vejo as fotografias, fico a pensar em ti)
poiso a revista, abro a televisão, fecho a televisão, vou à janela espreitar a rua, penso que é o teu carro a estacionar lá em baixo e nunca é o teu carro a estacionar lá em baixo, nunca és tu a fechar a porta com o comando eléctrico e as luzes do automóvel a acenderem-se e
a apagarem-se, nunca são os teus dois toques de campainha, nunca é o teu aceno no capacho nem o embrulhinho de biscoitos de que não gosto e me forço a comer e a fazer dieta no dia seguinte dado que os biscoitos engordam, nunca é a tua mão no meu ombro
- A minha menina
o teu perfume, a tua maneira de acomodar o rabo no sofá, a tua aliança que apesar de normal me parece sempre enorme e me dói, não tenho coragem de te confessar que me dói mas dói, conforme me doem as tuas mentiras
- Há anos que não há nada entre nós que me obrigam a perguntar, calada, se entre nós há alguma coisa, vinhas uma ou duas ocasiões por mês, não ficavas nunca e, no entanto, bastava-me, não peço muito à vida, não peço seja o que for à vida, acostumei-me, não tenho motivos para lamentar-me, o que ganho chega, graças a Deus a saúde não me tem faltado apesar do problema da coluna, tomo as injecções no posto médico e as coisas vão andando, o creme que me receitaram na farmácia ajuda, o apartamento claro que não é grande mas para mim sozinha chega e sobra, não existe uma prestação por pagar, arranjo sempre um dinheirito ao fim do mês, volta e meia compro um vestido, uns sapatos, os vizinhos não fazem barulho, há agora um bebé no primeiro direito mas sossegado, tenho saudades tuas, Ernesto, mesmo com a aliança tenho saudades tuas, no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado e apesar disso consegui fazer as compras todas, uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita, achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti
- És a minha menina
preocupo-me com o teu coração sempre que levas a mão ao peito, tiras um comprimido de uma caixinha, me pedes água, me ofereces um sorriso pobre
- Ferrugem na máquina
e a seguir melhoras, suponho que o comprimido limpa a ferrugem toda, aflijo-me com a tua palidez, com o dedo a medir a pulsação julgando que não noto, como podia não notar, tudo o que te aflige assusta-me, não te aborreço
- Que ferrugem na máquina?
para que não te sintas velho ou inútil, suponho que tens sessenta anos e portanto uma vida inteira à frente, o emprego deve cansar-te, as maçadas, quando menos se espera descais-te num suspiro
- A minha filha não há maneira de ter juízo
e ignoro o que, na tua ideia, não ter juízo seja, fico calada, é evidente, trago-te aquele licor fraquinho que tu gostas, faço-te festas no pescoço, a medo, com receio de maçar-te, não reclamo seja o que for, não mendigo seja o que for, só desejava que de tempos a tempos te lembrasses de mim, há sete meses que nem uma palavra, inquieta-me que a ferrugem haja aumentado e estejas na sala de espera de uma consulta, emagrecido, pálido, digo
-Ernesto
em voz alta como se dizer
-Ernesto
te melhorasse, comove-me que andes a perder cabelo, que o nó da tua gravata um bocadinho torto, que uma tremura no queixo, pode ser que mais de sessenta anos, sessenta e cinco, setenta e apesar de setenta a vida inteira à tua frente à mesma, o que eu não dava para te ter aqui um momento, um minutinho, um instante, na tua última visita trazias dentes novos que te tornavam mais vigoroso apesar de mal pegados à gengiva e a incomodarem-te que se percebia por estares constantemente a empurrá-los com a língua, oxalá encontres um pó que segure a placa, a minha mãe usa um pó que segura lindamente a placa, repara-se que placa mas firme como uma lapa no queixo, mastiga de tudo, não te agradava ficar um momento comigo no sofá, não te anima o licorzinho, a quantidade de vezes que digo em voz alta, aqui em casa
-Ernesto
na esperança de um sorriso teu, mesmo pobre, mesmo aflito, na esperança de
- A minha menina
e eu, sem coragem de responder
-O meu rapaz
 digo
-O meu rapaz
para dentro, não me sai, não consigo, faço tanta cerimónia, não me atrevo a procurar-te, a tentar saber de ti, a incomodar, a protestar
- Que aliança tão grande, Ernesto
eu que não casei nunca, uns namoricos, umas cartas cerimoniosas, um domingo, durante uma excursão ao norte, um
(desculpa)
beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti, Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera, sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas
- A minha menina
enquanto verificas se trazes
a caixinha dos comprimidos no bolso, pode parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes não levantes na minha direcção o teu sorriso pobre e a tua desculpa
-A ferrugem
mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o princípio do mundo.

Às vezes o amor

quarta-feira, 9 de março de 2011

e foste tu quem me criou a mim quando quiseste


















Como posso eu amar-te, se nem sei
como à porta te chamam os vizinhos,
nem visitei a rua onde nasceste,
nem a tua memória confessei.
Que vaga rima me permite agora
desenhar-te de rosto e corpo inteiro
se só na tua pele é verdadeiro
o lume que na língua se demora...
Não deixes que te enganem os recados
na infernal gazeta publicados
que te dão já por escultura minha;
nocturno frankenstein, em vão soprei
trombas de criação, e foste tu
quem me criou a mim quando quiseste

António Franco Alexandre

Bobby Brown

quinta-feira, 3 de março de 2011

na rua onde os nossos olhares se encontram é noite




































ingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.


José Luis Peixoto

Cada alegria que inventas mata a verdade que tentas porque é tentar a fingir

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

24 anos sem Zeca

E haveria tantos mais para aqui... e cada vez mais













































terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Chamaste...... mas nenhuma foi pelo meu nome



















Foi sempre tão incerto o caminho até ti:
tantos meses de pedras e de espinhos, de
maus presságios, de ramos que rasgavam a
carne como forquilhas, de vozes que me
diziam que não valia a pena continuar, que
o teu olhar era já uma mentira; e o meu

coração sempre tão surdo para tudo isso,
sempre a gritar outra coisa mais alto para
que as pernas não pudessem recordar as
suas feridas, para que os pés ignorassem
as penas da viagem e avançassem todos
os dias mais um pouco, esse pouco que
era tudo para te alcançar. Foi por isso que,

ao contrário de ti, não quis dormir nessa
noite: os teus beijos ainda estavam todos
na minha boca e o desenho das tuas mãos
na minha pele. Eu sabia que adormecer

era deixar de sentir, e não queria perder os
teus gestos no meu corpo um segundo que
fosse. Então sentei-me na cama a ver-te
dormir, e sorri como nunca sorrira antes
dessa noite, sorri tanto. Mas tu falaste de
repente do meio do teu sono, estendeste o
braço na minha direcção e chamaste baixinho.
Chamaste duas vezes. Ou três. E sempre tão
baixinho. Mas nenhuma foi pelo meu nome.



Maria do Rosário Pedreira

Heart attack and vine

domingo, 20 de fevereiro de 2011

































Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.








Sophia de Mello Breyner Andresen

What Are You Doing For The Rest Of Your Life?

sábado, 19 de fevereiro de 2011

mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.





























De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu

recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti

que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,

mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.



Maria do Rosário Pedreira

I am not fighting for you any more

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Com cinza nada se escreve a não ser as vogais do silêncio



















O sótão:
era ali que o mundo começava.
Ainda não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa de música, a tua concha
de areia.

E ainda
o não sabes hoje.

Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio.

E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.

Albano Martins

Tears in heaven

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Já não tenho coração, já mo tiraram do peito

Com novo disco em Março e digressão em Abril com passagem por Almada e Castelo de São Jorge

e no meu coração só há uma vermelha flor de sal


















não chames por mim
levo nos olhos queimados
o fim dos desertos

não te posso escutar
na branca solidão dos dias
porque até no meu silêncio
te matei

não chames por mim
levo nos passos
o veneno da Lua

a espuma do tempo
sai-me das mãos vazias
e apaga o trilho
por onde as vozes
podem chegar

não chames por mim
levo o peito tão rasgado
de ausência!

e no meu coração
só há
uma vermelha flor de sal
que já ninguém
pode tocar


gil t. sousa

La casa se queda sola

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

E quando, daqui a nada, deixares o chão desta casa encostarei amorosamente os lábios ao teu copo para sentir o sabor desse beijo





































Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.


Maria do Rosário Pedreira

Eternal Sunshine of the Spotless Mind

Há memórias que deveriam ser mesmo apagadas


Defino-te em segredos, revejo-te em memória





















Estou diariamente à tua espera
como quem espera um astro pela noite

Defino-te em segredos
Revejo-te em memória

Invejo-te
Construo a tua boca sem palavras
Construo este silêncio em que me prendo.

João Rui de Sousa

Breaking the waves

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Olha-me de novo, como menos altivez, e mais atento






















Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hida Hist

Não quero cantar amores nem falar dos seus motivos.





Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas.
Não quero cantar amores.

paraísos proibidos,
contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demência dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Da má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.


Augustina Bessa-Luís

Modern Times

Chaplin sempre actual... cada vez mais actual

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

tocar-te os lábios num fim de verso














































saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;

e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;

tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,

e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.

Nuno Júdice

A tua mão no pescoço, as tuas costas macias por quanto tempo rondaram as minhas noites vazias

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pelo tacto nos conhecemos, é essa luz oblíqua que nos cega



























Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio.



Albano Martins

This is from the heart

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A saudade é que faz as coisas pararem no tempo...




















O luar,
é a luz do Sol que está sonhando

O tempo não pára!
A saudade é que faz as coisas pararem no tempo...

...os verdadeiros versos não são para embalar,
mas para abalar...

A grande tristeza dos rios é não poderem levar a tua imagem...



Mário Quintana

Gene Kelly

Eugene "Gene" Curran Kelly (23 de agosto de 1912 — 2 de fevereiro de 1996)


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

e eu acorrentada para sempre no teu peito





















guarda-me
adormecida para sempre no teu peito

ou deixa-me voar uma vez mais sobre
esta terra de ninguém onde morro
por qualquer coisa que me fale de ti

há noites assim em que o silêncio
se transforma ao de leve numa lâmina
que minuciosamente rasga o linho
onde ficou esquecido o corpo que habitámos
em provisórias madrugadas felizes

depois é só abrir os braços e acreditar
que ainda faltam muitas horas para a partida
e que à-toa pelos corredores ainda escorre
uma razão primeira a trazer-me de volta

e eu adormecida para sempre
no teu peito

e eu acorrentada para sempre
no teu peito

e de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas
porque as palavras certas estavam todas
em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor

muito ao longe uma voz desgarrada
estabelece o fim do verão

e eu adormecida para sempre
no teu peito

e eu acorrentada para sempre
no teu peito



Alice Vieira

Tiempo Pequeño

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala

























amanhã meu amor,

amanhã faço poemas com os teus dedos donde nascem flores,
amanhã escrevo-te cartas com os lábios a tremer de frio,
amanhã adormeço desperta no canto mais canto que houver da tua voz,

amanhã meu amor,
verei todas as folhas amarelas que nascem do chão e regressam aos ramos dos teus braços,
amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala,
amanhã fecho os olhos e finjo que estou acordada
para que me toques as pálpebras com a respiração ofegante de quem cega,

amanhã meu amor,
abro as janelas do peito onde nascem estrelas sem céu,
abro a cama e procuro-te debaixo dela,
dou-te a mão para me encontrares no mapa da pele dolorida,
para que me encontres talvez no mesmo sítio de sempre onde nunca foste,

amanhã meu amor,
dedico-te o vento que roça as estátuas já esverdeadas da tua cidade,
faço-te promessas de palavras que não existem,
desafio-te para um duelo de um só combatente,
deixo-te sozinho comigo encostada aos teus ombros de lava,

amanhã meu amor,
vou cantar canções na rádio da frequência 0.00,
vou atirar-te areia com os pés no meio de lugar nenhum,
devolvo-te as minhas ideias que nunca ouviste porque não sei dizê-las com boca nem mão,

amanhã meu amor,
vou gostar de ti como se fosses uma manga doce,
vou ter medo das paredes intactas do teu ser,
vou gritar às raízes das árvores por não as ser   ,
vou girar à volta do mundo sem sequer o saber,

amanhã meu amor,
vou desenhar a lápis de cera como as crianças,
dar-te um desenho de que me vou esquecer,
amadurecer à tua espera, à espera de me ver em ti,

amanhã meu amor,
vou fazer malabarismo com o tempo,
desprender-te da liberdade, da minha liberdade,
acongechar-te à noite sem saberes,

só porque amanhã meu amor,
amanhã,
vou continuar a gostar de ti.



Raquel Lacerda