segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Falsas recordações felizes
O passado de Gonçalo começou a desmoronar-se à mesa de um bar, no Bairro Alto, várias cervejas depois da meia-noite, quando ao riso sucedeu o cansaço. Tinham discutido o namoro de Penélope Cruz com Tom Cruise. A conferencia sobre racismo em Durban. As vantagens e os perigos do casamento. Então, em meio ao fumo amargo que enchia a sala, alguém lançou um novo tema – o Primeiro Beijo.
«Nunca me esquecerei», disse ele. «Foi em mil novecentos e setenta e oito, no dia em que fiz dezasseis anos. Tinha ido a um concerto do Chico Buarque com alguns colegas de liceu. O Chico começou a cantar o Eu te Amo, que aliás não se presta muito para uma declaração de amor, é antes uma canção de despedida. Lembram-se?...»
Cantarolou com voz rouca:
«Se nós, nas travessuras das noites eternas / já confundimos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo seguir. / Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunçada do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu…»
Calou-se um momento, o olhar absorto, enquanto enrolava nostálgico uma madeixa do cabelo. Já não lhe restava muito cabelo de forma que aquele tique era um pouco deprimente. Suspirou.
«E então ela encostou a cabeça no meu ombro e eu beijei-a.»
«É bonito», reconheceu um dos amigos, critico de música, um tipo que se gabava de saber quase tudo sobre tudo, ou, em alternativa, tudo sobre quase tudo – e realmente sabia. A erudição dele incomodava os outros. «Seria ainda mais bonito se fosse verdade. Isso não pode ter acontecido em mil novecentos e setenta e oito. O Chico Buarque só criou essa canção, em parceria com o Tom Jobim, dois anos mais tarde.»
Gonçalo olhou-o perturbado:
«Disparate! Tenho a certeza que o Chico cantou essa música na noite em que fiz dezasseis anos, portanto em mil novecentos e setenta e oito. Foi nessa noite que comecei a namorar com a Marisa. Infelizmente nunca mais soube dela. Vocês lembram-se da Marisa, não se lembram?»
Não, ninguém se lembrava da Marisa. A Gonçalo, todavia, bastava fechar os olhos para voltar a vê-la. Era uma rapariga alta e flexível, com grandes olhos negros, melancólicos, e um alheamento pelas coisas do mundo que a fazia parecer imaterial. Apetecia ao mesmo tempo protege-la e ultrajá-la. Confrontados com a descrição de Gonçalo todos lamentaram não ter conhecido Marisa. Na mesa ninguém se lembrava dela. Pior: nem sequer se lembravam dele por essa altura.
«Só te conheci em mil novecentos e noventa», precisou o crítico de música. «Num concerto da Cesária Évora.»
Aquilo era demais. Gonçalo levantou-se indignado:
«Nunca estive num concerto da Cesária. Nunca!»
Ninguém disse nada. Toda a gente sabia que o critico de música jamais se enganava nos factos. Menos ainda nas datas. Gonçalo tirou uma nota do bolso e colocou-a sobre a mesa.
«Eu já vou…»
Nenhum dos amigos procurou detê-lo. Gonçalo saiu aflito para a noite mansa. Qual era a sua recordação mais antiga? Esforçou-se um pouco. Recordava-se de ter assistido pela televisão à ocupação de Goa pelas tropas indianas. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo, ainda não andava na escola. Voltou ao bar e perguntou ao crítico de música:
«Olha lá, sabes dizer-me quando é que perdemos Goa?»
O outro nem pestanejou:
«A dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e um.»
Gonçalo respirou fundo. Nessa data ainda nem era nascido. Seria possível que todas as suas memórias fossem apócrifas? Voltou a sentar-se, tremulo, e pediu mais uma cerveja. Se não podia confiar nas próprias recordações não havia nada em que pudesse confiar. O crítico de música citou Buñuel:
«Uma vida sem memória não é uma vida.»
Depois percebeu que aquilo não tinha nada de animador e tentou emendar:
«O teu caso não me parece tão grave. Tens uma vida. É falsa, sim, mas afinal de contas é uma vida.»
«Mais valem falsas recordações felizes», acrescentou um outro, «do que lembranças autenticas e desgraçadas.»
Gonçalo estava inconsolável:
«Vocês acham que eu nunca beijei a Marisa?»
Ninguém respondeu. Talvez tivessem bebido demais. Talvez fosse demasiado tarde. Talvez achassem realmente que ele nunca beijara Marisa.
José Eduardo Agualusa
Publicada por
coisas que me (en)cantam
à(s)
17:53
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Etiquetas:
Chico Buarque,
José Eduardo Agualusa