sábado, 9 de outubro de 2010

Isto já passa amigo


























Duzentos euros por mês não dão para grande coisa: uma sopinha e uma maçã ao almoço, uma sopinha e uma maçã ao jantar. Nos intervalos pede-me cigarros

- Não há por aí um cigarrinho a mais, doutor?

ou senta-se nas esplanadas até o mandarem embora, tratando-o por tu

- Põe-te a andar

e ele lá segue para o café próximo a arrastar um sapato sem atacadores. Não aceita esmolas, não aceita dinheiro, só pede cigarros aos amigos

- Só peço cigarros aos amigos

de acordo com o seu código aristocrático de miséria. Quando quis oferecer-lhe uma camisola recusou ultrajado

- Sou algum infeliz, eu?

e levou uma semana a perdoar a minha incompreensão da sua dignidade

- Você pode ser doutor e escrever livros mas não percebe nada da vida

e tem razão, não percebo nada da vida. O seu maior orgulho é ter feito a tropa em Chaves

- Em Chaves, senhor

e eu, que nunca fui a Chaves, esmagado de respeito por Chaves pela maneira como ele fala

- Quem não conhece Chaves conhece pouco do mundo

e tem razão outra vez, conheço pouco do mundo. Pergunto-lhe

- Como é Chaves, senhor Ismael?

e em vez de resposta olha-me, durante uma eternidade, com pena sincera, até erguer ao alto, por fim, a mão de unhas duvidosas, unidas em cacho para dar ênfase à maravilha da cidade. A mão acaba por descer a fim de aceitar um cigarro

(um cigarrinho)

e o senhor Ismael a estender-se para a labaredazita do isqueiro

- Tem montanhas perto

e o

- tem montanhas perto

deixado cair como uma moeda fora da circulação, pequena condescendência a um ignorante que não merece que se gaste tempo em explicações. Depois de tossir o fumo acrescenta

- E outras coisas

submerso em inesquecíveis lembranças militares, paisagísticas, amorosas

- Gajas boas não faltam

gajas boas a inundarem, só para ele, as ruas de Chaves, sorrindo-lhe, piscando-lhe o olho, chamando-o num sussurro prometedor

- Ismael

e o senhor Ismael, é claro, a dar conta do recado

- Sempre dei conta do recado, doutor

fossem dez, vinte ou cinquenta

- Pelos ossos da minha irmã que está na cova que aviei seis numa tarde

sem tirar o bivaque de magala

- Mostre-me uma mulher que não goste de fardas

as mulheres e o senhor Ismael gostavam de fardas, puxou de uma espécie de carteira que, com o tempo, adquiriu a forma da sua nádega, na carteira o retrato seboso de um soldado

- Soldado vírgula, amigo, cabo ferrador

o retrato de um cabo ferrador, cheio de infância na cara mas inigualável a aviar, em que levei tempo a descobrir a criatura de agora, já sem infância nenhuma na cara, pregas, cicatrizes, a pele a lembrar-me o mapa de Portugal da minha escola, com uma cagadela de mosca no Alentejo e uma segunda mesmo ao lado de Faro, nas feições do senhor Ismael também os pontos negros das cidades, rugas iguais ao Guadiana e ao Douro, a ponta de Sagres do queixo, o estuário do Tejo da boca e, a propósito de boca

- Não se arranja um bagacinho que tenho a língua seca

mostrando-ma a sair das gengivas desmobiladas, guardando-a de novo

- Sequíssima

pronta à lubrificação do bagaço, metido na goela de uma só vez, à homem

- Quem não mete o bagaço de uma só golada não é homem nem é nada

seguido de soluços e lágrimas afastados com desprezo pela manga

- A gente envelhece

e no meio das lágrimas do bagaço uma lágrima diferente, que ele percebeu que eu notei dado que

- Isto passa

de súbito quase menino, quase aflito, quase a abraçar-me, o retrato do magala por uma pena, cheio de infância na cara. Disse

- Doutor

repetiu

- Doutor

e ficámos os dois que tempos em silêncio porque na realidade o

- Doutor

um discurso compridíssimo, com todas as suas desgraças dentro. Passado um grande bocado acrescentou

- Tenho dormido num degrau, sabia?

levantou-se da cadeira e foi-se embora, aposto que sem pensar em Chaves, nos montes, nas gajas, todo inteiro no interior de uma incomodidade com picos que o atormentavam, o filho morto em criança, a mulher ida com um caixeiro viajante, os duzentos euros, a sopinha. Mas havia de acabar por animar-se

- Isto já passa amigo

porque não há azares que um cabo ferrador como deve ser não aguente, em sentido para o toque a silêncio, que nos mexe a todos por dentro e é o mais bonito que existe.

António Lobo Antunes