terça-feira, 26 de outubro de 2010
Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem
Nunca falámos muito
(acho que nunca falámos nada)
e não sinto necessidade de começar agora. O que lhe poderia dizer? -existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras, dúvidas, esperanças, perguntas, a curiosidade, por exemplo, de saber o que sentiu quando eu estava em coma com a meningite, você me fez uma punção lombar e andou a procurar os micróbios no microscópio. O meu filho morre? Não morre? Foi isso que sentiu? A angústia? O medo? E depois, na altura em que os bacilos da tuberculose me vieram aos pulmões? Disso lembro-me bem, da minha impaciência, da minha zanga com o mundo, de me trazerem presentes e eu os jogar no chão. Nunca falámos muito
(acho que nunca falámos nada)
dou por mim agora a olhar a sua cara devastada, os olhos fechados, os dedos que não cessam de mover-se, o seu frio constante e fico calado a vê-lo. Você abre os olhos
(continua a surpreender-me que sejam azuis)
alcança-me para ali sentado, no quarto que foi o meu e de onde
agora você quase não sai, interroga-me
- Tens escrito?
não respondo
(o que lhe importa isso?)
o azul dissolve-se em mais uns minutos de sonolência, toma a abrir os olhos e então sim, conversamos um bocado. De Schubert. Dos Impromptus. Na janela a figueira.
Sonolência de novo. O azul regressa: Sá de Miranda em lugar de Schubert, um soneto que, aliás, você cita de maneira errada. Mas o verso a seguir está correcto:
incertos muito mais que ao vento as naves
e os dedos em paz. Terá adormecido? Não, porque me informa
- Tenho uma data de anos
e tem: a boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos?
- Tenho uma data de anos
e é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos.
Chega-lhe à ideia a Floresta Negra, o Professor Vogt:
- Queria que eu ficasse lá a trabalhar com ele
o Professor Vogt e a sua colecção de cérebros cortados às fatias:
- Há vinte e quatro anos que não faço clínica
e concordo que uma data de anos. A infância em Tânger, o meu avô. Murmura
- O meu pai
e ao articular
- O meu pai
espanto-me como em criança me espantava que o meu pai tratasse outra pessoa por pai. Pai era você. O meu avô era avô. E, dentro de mim, eu exigia as coisas assim simples, claras. Na janela a figueira.
Havia duas mas a outra, a mais antiga, morreu. Sobrou esta. Sobramos nós dois no que foi o meu quarto, com a fotografia enorme de Charlie Parker na parede. Então penso que você pode ter todos os defeitos do mundo mas era de certeza o único pai que pregou no quarto de um filho adolescente o retrato de Charlie Parker. A expressão de Charlie Parker lembra-me a frase de uma carta de Van Gogh ao irmão: sofremos por conta de uma porção de malandros e safados.
Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem. O que é que a puta desta figueira espera para dar folhas, flores? Schubert. Sá de Miiranda. Os dedos parados. Então levanto-me e saio do quarto. A minha mãe
- O que achaste do pai?
e ao descer as escadas para a rua dou-me conta de que afinal não existe nada debaixo dos tais anos de silêncio. Quero dizer, quase nada: existe um filho cheio de coisas que prefere não transformar em palavras enquanto, muito ao longe, um saxofone principia a tocar.
António Lobo Antunes
Publicada por
coisas que me (en)cantam
à(s)
06:31
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Etiquetas:
António Lobo Antunes,
Charlie Parker