segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Teadrops

Uma das vozes mais bonitas de sempre, Liz Fraser

sábado, 24 de dezembro de 2011

Se calhar é sempre de noite quando a gente cresce



















Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: Benfica mudou, a minha mãe deixou de ter 30 anos, posso fumar sem que ninguém me proíba, quando vem a travessa para a mesa nunca são fatias recheadas, não encontro os meus irmãos de pijama, com os cabelos loiros molhados do banho. A casa dos meus pais não se alterou muito: os quartos dos filhos transformaram-se em salas mas o cheiro é o mesmo. Há retratos de mortos: os meus avós, alguns tios, algumas tias, mortos que nunca me habituei ao facto de estarem mortos, que não me espantaria se entrassem de repente, pessoas que fazem uma falta dos diabos a quem não faço falta nenhuma porque nada agora lhe faz falta quanto mais eu. Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: não conheço as pessoas nem os prédios, o Paraíso levou sumiço, a Havaneza evaporou-se, não sei da dona Maria José contrabandista, não sei do maluco dos passarinhos, há séculos que não vejo o meu pai fazer a barba, há séculos que minha mãe, com a tesoura pequenina não mão, não me diz

- Mostra lá os dedos

para me cortar as unhas. Sou eu que as corto sozinho com um corta-unhas e como sou aselha demoro eternidades a apanhar as aparas nos azulejos com o indicador molhado em cuspo. E corto-as em silêncio, sem berrar como um vitelo, a minha mãe espantada

-Ainda nem comecei

a minha mãe que nos cortava as unhas, nos dava injecções, transformava as camisas do tio Eloy em camisas para nós e como sou o mais velho estava sempre grávida, João Pedro Miguel Nuno Manuel. Saio de lá com a infância atravessada e fico no automóvel a ver o muro do jardim, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite, a Travessa do Vintém das Escolas na mesma excepto o Cabecinha que não tornei a ver, Não Sei Quê da Costa Cabecinha, num rés-do-chão de peitoril à altura do passeio, com quem me apanharam a pedir para o Santo António e que tinha fotografias de mulheres nuas, rectângulos de papel negro com criaturas desfocadas que não se percebia peva e ele achava que sim

- Olha as mamas da gaja

eu cheio de vergonha e boa vontade sem perceber mamas nenhumas e o Cabecinha a guardar aquelas preciosidades no bolso

- Seu artolas

e a partilhar os tesouros com os Ferra-o-Bico que eram mais esclarecidos que nós, se entendiam em glândulas e levavam miúdas ciganas para o mato atrás da Escola Normal a fim de procederem com elas a operações misteriosas. A infância atravessada é pior que uma espinha: a gente engole bolas de pão e não passa. Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando lá vou me sinto como um cão à procura de um osso que julga ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama.

(está lá, a minha cama)

como me procuro no quintal, na figueira do quintal, no sítio em que havia o poço, em que havia a capoeira, de modo que depois do jantar fico no automóvel a ver o muro, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite. Se calhar é sempre noite quando a gente cresce. Fico no automóvel à espera que a minha mãe me chame e sabendo que não me chama porque julga que me fui embora. Realmente fui-me embora. Para sempre.


António Lobo Antunes

Tenho um nó que não desata e tu ataste para sempre no meu peito a vida inteira

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Diz-me assim devagar coisa nenhuma






































Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como outra solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?


Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.



Jorge de Sena

Happy Xmas

sábado, 17 de dezembro de 2011

Vem aos meu sonhos, vê os labirintos por onde me perco
























Vem aos meus sonhos,
faz em mim a tua casa.

Planta, em frente,
a cerejeira dos pássaros brancos,
deixa que eles pousem nos ramos
e cantem eternamente,
deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu nome,
antes de os relâmpagos acenderem os prados.

Vem aos meu sonhos,
vê os labirintos por onde me perco,
vê os meus países do mar,
vê, em cada barco que parte do meu coração,
as viagens que não fiz, os amores que não tive,
a lua cruel da minha solidão.

Vem aos meus sonhos,
traz um fio de água para as dálias
do meu quarto vazio,
não queiras que as suas pétalas
sequem muito depressa,
caindo pelos delicados muros de cristal,
apagando a cor que dava vida
aos aposentos do solitário.

Deixa que ele evoque a secreta
doçura das colmeias,
e vem,
vem aos meus sonhos,
ilumina o meu domingo de cinzas,
o meu domingo de ramos, o meu calvário,

diz que estás aqui,
nesta página que escrevo para nunca te esquecer.



José Agostinho Baptista

Christmas In New Orleans

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

talvez um dia quem sabe o destino volte a ter novos contornos e nos olhe de frente























até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis


pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado

talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti



Alice VIeira


Mais espírito natalício

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Porque é de ti que me vem o fogo



























Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.




Herberto Helder




White Christmas

Mais espírito natalício

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Porém, se me levanto, não faço mais do que arrastar a solidão pela casa








































O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam as minhas noites. Depois de teres
partido, os lençois da cama são como limos frios
que se agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;


talvez procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio, como um pombo cego a debicar
as sombras na única praça deserta da cidade —


o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.


Maria do Rosário Pedreira

The Boss

Mais do meu espírito natalício

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

sem um tremor a mais, abraço-me às tuas ausências




























Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses de muito tempo
e beijos bem-vindos
de primeiras de troca
e de último vagão

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tacto e por sabor

sem um tremor a mais,
abraço-me às tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de vós

Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição

Meus hóspedes concorrem,
concorrem como sonhos
com os seus rancores novos
sua falta de candura
eu coloco-lhes uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de vós

Porém o rosto de vós
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como alimentos
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagam a minha jornada.

as paredes vão-se
fica a noite
as nostalgias vão-se
não fica nada

Já meu rosto de vós
fecha os olhos.

E é uma solidão
tão desolada.



Mario Benedetti


Santa Claus is coming to town

Este ano estou com o espírito da época.

sábado, 26 de novembro de 2011

O infinito afinal fica aqui ao pé da gente





































Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!

Diz a outra: “Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!”

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

Night breezes seem to whisper I love you

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

hoje, vou correr à velocidade da minha solidão


















Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto

People are strange

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue























Se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o  meu corpo da espuma dos planetas.
não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca.
e de luar em luar celebra o coração que fiz teu, mudamente,
como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue.

Vasco Gato