sábado, 24 de dezembro de 2011

Se calhar é sempre de noite quando a gente cresce



















Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: Benfica mudou, a minha mãe deixou de ter 30 anos, posso fumar sem que ninguém me proíba, quando vem a travessa para a mesa nunca são fatias recheadas, não encontro os meus irmãos de pijama, com os cabelos loiros molhados do banho. A casa dos meus pais não se alterou muito: os quartos dos filhos transformaram-se em salas mas o cheiro é o mesmo. Há retratos de mortos: os meus avós, alguns tios, algumas tias, mortos que nunca me habituei ao facto de estarem mortos, que não me espantaria se entrassem de repente, pessoas que fazem uma falta dos diabos a quem não faço falta nenhuma porque nada agora lhe faz falta quanto mais eu. Sempre que vou jantar a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada: não conheço as pessoas nem os prédios, o Paraíso levou sumiço, a Havaneza evaporou-se, não sei da dona Maria José contrabandista, não sei do maluco dos passarinhos, há séculos que não vejo o meu pai fazer a barba, há séculos que minha mãe, com a tesoura pequenina não mão, não me diz

- Mostra lá os dedos

para me cortar as unhas. Sou eu que as corto sozinho com um corta-unhas e como sou aselha demoro eternidades a apanhar as aparas nos azulejos com o indicador molhado em cuspo. E corto-as em silêncio, sem berrar como um vitelo, a minha mãe espantada

-Ainda nem comecei

a minha mãe que nos cortava as unhas, nos dava injecções, transformava as camisas do tio Eloy em camisas para nós e como sou o mais velho estava sempre grávida, João Pedro Miguel Nuno Manuel. Saio de lá com a infância atravessada e fico no automóvel a ver o muro do jardim, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite, a Travessa do Vintém das Escolas na mesma excepto o Cabecinha que não tornei a ver, Não Sei Quê da Costa Cabecinha, num rés-do-chão de peitoril à altura do passeio, com quem me apanharam a pedir para o Santo António e que tinha fotografias de mulheres nuas, rectângulos de papel negro com criaturas desfocadas que não se percebia peva e ele achava que sim

- Olha as mamas da gaja

eu cheio de vergonha e boa vontade sem perceber mamas nenhumas e o Cabecinha a guardar aquelas preciosidades no bolso

- Seu artolas

e a partilhar os tesouros com os Ferra-o-Bico que eram mais esclarecidos que nós, se entendiam em glândulas e levavam miúdas ciganas para o mato atrás da Escola Normal a fim de procederem com elas a operações misteriosas. A infância atravessada é pior que uma espinha: a gente engole bolas de pão e não passa. Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando lá vou me sinto como um cão à procura de um osso que julga ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama.

(está lá, a minha cama)

como me procuro no quintal, na figueira do quintal, no sítio em que havia o poço, em que havia a capoeira, de modo que depois do jantar fico no automóvel a ver o muro, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite. Se calhar é sempre noite quando a gente cresce. Fico no automóvel à espera que a minha mãe me chame e sabendo que não me chama porque julga que me fui embora. Realmente fui-me embora. Para sempre.


António Lobo Antunes