terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.
(...)Lá no sul,onde nasci:o meu corpo dentro do corpo da minha mãe,sob a sua pele,encostado aos seus ossos;lá no sul,existem casas caiadas,existem campos,existem planícies que estão agora tão longe de mim e que,ao mesmo tempo,estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro dessa memória,na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois de eu nascer,a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da casa adormeceram.Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal.Tinha os pés descalços sobre a terra.Eram os últimos dias do verão.No centro do céu da noite,a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada.Os dedos da minha mãe eram grossos no momento em que,com ambas as mãos me levantou no ar,sobre a sua cabeça,na direcção da lua e disse:
Ò lua,ò luar,/eu fi-lo nascer/ajuda-mo tu a criar.
Eu era pequeno e branco.Nos olhos da minha mãe via-se os seus braços erguidos,via-se o meu corpo dentro do círculo branco da lua.
Nesta noite,antes e depois de nos separarmos,era essa mesma lua que existia no céu.Como a minha mãe,essa lua existia num lugar onde não a tentámos ver,mas sei agora que existia e saber isso é saber que o mundo é tão vasto.Agora,neste momento,não sei onde estás.Imagino-te a fazer tantas coisas.Imagino-te a não te lembrares de mim.Agora,longe daqui,existe a terra do sul onde nasci.Estou parado e sei que vou recomeçar a caminhar.
Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu.Olho para as minhas botas e vejo uma altura de nevoeiro que começa a levantar-se do chão e a envolver-me lentamente os joelhos.Os pontos de luz que brilham no chão são mais vagos.E uma voz terrível e negra começa a atravessar-me.Não distingo as palavras que diz através de mim.Lentamente,levanto o olhar ao céu.Sobre mim,existe um lugar infinito e maior do que eu.Sobre mim,o céu desta manhã é o espaço infinito onde pode existir tudo aquilo que existe nomeu peito.Como a sombra pálida do meu coração,distingo no céu desta
manhã,no céu luminoso e baço do meu peito,a forma branca da lua.O dia nasceu sobre a noite e a noite continuou sob a luz cinzenta desta manhã.A noite feita com formas de fumo e de nevoeiro.Quando ainda era mesmo de noite e estavas ao meu lado,disseste:não podemos ser felizes.Eu desejava-te tanto.Eu via os teus olhos através do ar da noite,sabia que estavas a meu lado e sabia que nos íamos separar.Vi-te partir.Os teus passos a afastarem-te de mim.Eu estava parado perante o horror,o medo.Tu afastavas-te de mim.
Entravas em casa,como se saísses para sempre de mim.Saías para sempre de mim.O momento em que fechaste a porta:eu soterrado por todo o negro, todo o veneno negro.Uma faca infinita.Eu a perceber que ficarás para sempre fechada dentro dessa casa.Nunca,nunca mais poderás sair.A noite,a rodear-me,era o lugar negro onde existiam certezas terríveis:a morte,a morte de tudo.Entre as paredes das casas,a tua casa.Os vidros das tuas janelas fechadas refectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim,olhava para o lugar onde sabia que estavas,a casa que te continha e,no entanto,aquela casa era um lugar escuro,um poço,era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós.Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver.Eu desejava-te ainda.Agora,desejo-te ainda.Sei que existem cemitérios.Sei que a casa onde estás,o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas,a não te lembrares de mim,é um lugar de destroços.
Vivemos rodeados de cemitérios.Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não voltaremos a ver.No céu,a lua é a mesma que existia quando,deixando-te,caminhei pelas ruas desertas.Os meus passos na noite.Os meus passos e,lentamente,o dia a nascer sobre as coisas da noite.Lentamente,a noite fixa no seu lugar,nos objectos,nas casas,no céu,e o dia a envolvê-la como uma capa de luz cinzenta.Esta manhã lunar.Esta manhã que é uma manhã e que é ainda a noite.A lua neste céu branco.Pouso as pálpebras sobre os olhos.Vapor,nevoeiro.Os teus olhos eram um caminho.Os teus cabelos eram talvez um horizonte.Não sei como acreditámos que as palavras eram simples.
Sonhávamos e enganámo-nos.Sorrindo,mergulhávamos os lábios no veneno
quando pensámos que bebíamos o antídoto.(...)
José Luis Peixoto
Publicada por
coisas que me (en)cantam
à(s)
15:50
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